A Praça Tahir, quatro anos depois

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Por adrianacarranca
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Foto (Adriana Carranca/AE): Egípcios fazem piquenique na Praça Tahir, recentemente reaberta; são vigiados à distância por soldados e policiais

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De seu apartamento, no quarto andar de um prédio de paredes descascadas, com a luz intermitente e um velho elevador que funciona graças a um gerador cotizado entre moradores, Hisham Khassem observa a Praça Tahir com um ar melancólico. O entusiasmo de quando viu, do mesmo canto da janela, milhões de manifestantes tomarem as ruas, há quatro anos, se foi. O 25 de janeiro marca o aniversário de uma revolução cujos desdobramentos os egípcios ainda tentam digerir e o resultado mais perceptível é a frustração.

Em 18 dias, os revolucionários derrubaram o ditador Hosni Mubarak e seu regime de três décadas; mas, nos anos seguintes, viram sucessivos líderes fracassarem até os militares recobrarem o poder em novo golpe, em julho de 2013, quando o presidente eleito Mohammed Morsi, da Irmandade Muçulmana, foi deposto pelo general Abdel-Fattah al-Sissi, confirmado no cargo em maio de 2014 em uma eleição praticamente sem rivais.

"O fato é que, quando o regime de Mubarak caiu, não havia nenhum processo político em andamento, ninguém capaz de substituí-lo. Nós não tínhamos um Mandela", disse ao Estado Khassem, ativista pró-democracia que fundou na era Mubarak o primeiro jornal independente do país, Al-Masry Al-Youm (O Egito Hoje). Ele também esteve à frente da Organização Egípcia por Direitos Humanos e foi vice-presidente do Hizb AL-Ghad, partido centrista liberal e secular, que hoje operam com dificuldades.

A maioria dos movimentos revolucionários foi silenciada, a oposição está na cadeia ou isolada.As demandas da revolução nunca foram atendidas. O último ano foi marcado por prisões em massa, repressão e violência. A Justiça liberou Mubarak de todas as acusações que pesavam contra ele, ao mesmo tempo em que condenou à morte integrantes da Irmandade Muçulmana, de Morsi. Agentes de segurança do Estado retomaram velhas práticas arbitrárias de antes e o novo governo aprovou lei que tornou ilegais protestos sem autorização prévia da polícia - e, no sábado, policiais mataram uma mulher, quando ativistas caminhavam para a Praça Tahir levando flores para lembrar os manifestantes mortos desde o início da revolução.

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Ainda assim, Sissi desfruta de surpreendente popularidade - exceto entre os islamistas partidáros da Irmandade. "Nunca disse que manifestações seriam proibidas, mas 90 milhões de pessoas querem comer, beber, viver e ter certeza sobre seu futuro", declarou Sissi na terça-feira. "Eu sou mais pró-direitos humanos do que ninguém, mas tenham cuidado ao demandar seus direitos. Tenham cuidado em não nos derrubar com vocês." O regime também tem explorado o temor de que qualquer nova revolução transforme o Egito na Síria ou Iraque.

Integrantes do Parlamento que assumiu brevemente em 2012, revolucionários e ativistas como Khassem renderam-se a esse discurso. Para os liberais, a ameaça de um governo islâmico autocrático para o qual pareciam caminhar Morsi e a Irmandade Muçulmana é maior do que a repressão de Sissi. Eles o veem como um mal necessário para retomar a estabilidade e a economia - prioridades de que poucos egípcios discordam.

"O país precisa de estabilidade. O Egito não suportaria uma nova revolução. Melhor dizendo, o colapso do Egito não é algo que a humanidade pode se dar ao luxo de deixar acontecer, porque as consequências seriam realmente graves", diz Khassem.

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"Chegamos a uma situação em que as pessoas odeiam revoluções"

A sensação nas ruas é de que os egípcios tentam agora retornar ao ponto de partida, um dia antes da revolução. O impulso por mudanças deu lugar à luta cotidiana pelas necessidades mais básicas. Os sucessivos tumultos provocaram o colapso do turismo, a principal indústria do Egito. O desemprego é endêmico, mais da metade dos egípcios vive com menos de US$ 2 por dia, o país não produz o suficiente para alimentá-los e precisa importar a comida, além de energia.

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Fotos (Adriana Carranca/AE): Comerciante espera por clientes no mercado Khan El Khalili, vazio (esq.); no centro do Cairo, morador de rua dorme na porta de um dos campi da Universidade Al-Azhar.

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A queda no número de turistas - de 14,7 milhões em 2010, antes da revolução, para 9,5 milhões em 2013, último dado disponível - pode ser atestada nas vielas desertas do Khan El Khalili, o mais famoso mercado da capital. Numa tarde de quarta-feira, a reportagem encontrou lojas vazias e os vendedores entediados. "Nós precisamos de mais turistas e não de mais tumultos", disse ao Estado o comerciante Mohamed Saleh, de 67 anos, diante de caixinhas de madeira talhada e outros suvenires egípcios cobertos por uma densa camada de poeira. Vendedores vizinhos ecoaram suas palavras.

"Nós chegamos a uma situação em que as pessoas odeiam revoluções", disse Khassem. Lideranças que emergiram ao cenário político pós-revolução, como Mohamed ElBaradei, o Nobel da Paz que foi vice-presidente do Egito por um breve período em 2013, optaram pelo exílio. Jovens revolucionários estão calados. Nas ruas do Cairo, ninguém parece lembrar de Wael Ghonim, o ex-executivo do Google que teria inflamado a revolução nas redes sociais.

"O que está faltando desde a última revolução do Egito? Gente", escreveu Thanassis Cambanis, autor de Once Upon a Revolution (Era uma Vez uma Revolução), em artigo na The Atlantic. Isso não significa que uma nova revolução esteja descartada. "Ou o regime faz as reformas e retoma um curso democrático, ou o seu mau desempenho vai provocar uma revolução que vai explodir na cara dele (de Sissi)", disse em entrevista recente Aboul Fotouh, ex-integrante da Irmandade Muçulmana, do qual se desligou em 2011 para concorrer à presidência, de forma independente, nas eleições de 2012. Após derrota ele fundou o Egito Forte, um dos poucos partidos de oposição ativos, que deve disputar as eleições parlamentares em março.

"Se Sissi não começar logo a dar esperança para a população, pode haver uma terceira revolução e ele sabe disso. Ele sabe que, se ocorrer, terá de deixar o poder ou vai ser jogado numa cela como Mubarak e Morsi. Lembre-se de que há outros 17 ou 18 generais no comendo militar. Entre eles, a 'Sissimania' não existe. Os militares são pragmáticos: para eles, é mais fácil prender um do que atirar em milhares de pessoas nas ruas", acredita Khassem.

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Por enquanto, Sissi tem garantido a estabilidade política com repressão, mas mantém o apoio com promessas de reformar a economia. Ele convocou para março, mês das eleições parlamentares, uma conferência com 2 mil líderes e executivos estrangeiros no balneário de Sharm El Sheikh para atrair investidores, principalmente para os setores de turismo, energia e agricultura. O Banco Central reduziu as taxas de juros e deixou, na semana passada, a libra egípcia cair ao seu menor valor em seis meses, para encorajar investimentos. No dia 13, a Grã-Bretanha lançou um pacote de comércio bilateral, o mais robusto em uma década, e promete ajudar o Egito na expansão do Canal de Suez, projeto lançado no ano passado para dobrar o fluxo de navios e aumentar a arrecadação dos cofres do governo.

Com a economia em crise, por enquanto o Egito se segura na corda de um salva-vidas jogada pelos países do Golfo. Desde o golpe que depôs Morsi, a Arábia Saudita e os Emirados Árabes disponibilizaram US$ 20 bilhões ao Egito em financiamentos e empréstimos. Com isso, o Banco Mundial espera que a economia egípcia cresça 2,9% este ano, contra 2,2% em 2014. "Mas este dinheiro está apenas devolvendo o país à situação em que estava antes da revolução. Serve, basicamente, para cobrir as despesas do governo", alerta Khassem. Ou nem isso. Quando a revolução implodiu, o Egito tinha reservas cambiais de US$ 35 bilhões. Nos anos de tumultos, o dinheiro minguou e, mesmo com a ajuda do Golfo, as reservas chegaram a apenas 16 US$ bilhões.

"Aquela foi uma revolta popular não só contra Mubarak, mas contra todos nós, que participávamos da política. Foi uma revolta contra mim, porque eu estou na oposição há mais de 20 anos e não soube fazer o que era preciso. A mensagem da praça foi: chega de todos vocês, todos falharam, como Mubarak. Agora é hora de nos reorganizarmos economicamente e politicamente", diz Khassem. Ele alterna sua fala com espiadelas na Praça Tahir, reaberta apenas recentemente. Lá embaixo, a população tenta retomar a normalidade. Em noites frescas como esta, famílias e grupos de amigos abrem toalhas de mesa sobre o jardim e fazem piqueniques, depois do trabalho. São vigiados à distância pelos olhos atentos de soldados e policiais.

* Uma versão deste texto foi publicada na edição impressa do Estado em 25/01/2015

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