As reais viúvas de bin Laden

No twitter @AdrianaCarranca

PUBLICIDADE

Por adrianacarranca
Atualização:

Adriana Carranca ENVIADA ESPECIAL CABUL Como muitos afegãos das áreas tribais de etnia pashtum, Shaista não tem sobrenome nem sabe dizer a idade. O lugar onde nasceu, um vilarejo rural em Kandahar, na fronteira entre o Afeganistão e o Paquistão, determinou, particularmente, o destino dela. Berço do Taleban, a província foi a primeira dominada pelo grupo, em 1996, e onde mais tarde Osama bin Laden receberia abrigo, sob proteção do líder Mulá Omar. Quando as forças de coalizão lideradas pelos Estados Unidos iniciaram a caça ao terrorista, em reação aos ataques de 11 de setembro, ali enfrentaram - e até hoje - os mais violentos conflitos. Foi em um deles que o marido de Shaista foi morto.

PUBLICIDADE

Depois de um dia de trabalho, como médico-assistente em uma clínica local, ele voltava de Kandahar para casa, na província vizinha de Zabul, quando um mini-ônibus explodiu na sua frente, fazendo de Shaista mais uma entre milhares de viúvas da guerra. Elas são a herança social mais perversa de bin Laden no Afeganistão.

Nos dez anos que os Estados Unidos levaram para encontrar o terrorista - localizado e morto em uma operação americana em Abbottabad, no Paquistão, no dia 2 -, milhares de civis afegãos perderam a vida no fogo cruzado entre as forças de coalizão e o Taleban. Inspirados na AlQaeda, os insurgentes usaram estratégias e táticas da organização de bin Laden, como os atentados suicidas. Embora fossem destinados a alvos militares internacionais, os ataques mataram majoritariamente civis afegãos.

Diferentes fontes falam em cerca de 1,5 milhão de mulheres que perderam os maridos nos mais de 30 anos de conflitos no país, desde a invasão soviética em 1979. A idade delas, quando ficam viúvas, não passa de 35 anos. A maioria tem filhos e 94% são analfabetas, segundo a ONG Beyond 9/11, que trabalha com essa população. O índice é maior do que a já absurda taxa nacional de 82% de analfabetismo entre as mulheres afegãs. A explicação é de que os conflitos mais violentos entre as forças estrangeiras e os taleban - e, portanto, as mortes - acontecem principalmente nas zonas tribais, onde o acesso à educação é muito mais difícil. Apenas 50 mil viúvas vivem na capital, Cabul. As demais estão espalhadas nos vilarejos do país.

"A vida se tornou muito difícil nessa área", diz Shaista. "Os taleban achavam que o meu marido era um espião, porque ele tinha contato com estrangeiros no hospital onde trabalhava. Eles o prenderam e puniram muitas vezes. Já os estrangeiros acham que todos naquela região são taleban. Nós somos pegos no meio de bombardeios dos militares, de um lado, e ataques suicidas de outro. Muitos conhecidos morreram. Um dia, chegou a vez dele", diz Shaista.

Publicidade

Sua vida sofreu uma reviravolta com a morte do marido. No Afeganistão, as mulheres não têm direito a herança e, viúvas, passam a depender da ajuda de outros homens da família ou de um novo marido. Na história do Islã, conta-se que o consentimento para que os homens tivessem até quatro mulheres tinha como motivo evitar que as viúvas ficassem desprotegidas e acabassem nas ruas. Como fieis muçulmanos, os pais e irmãos mais velhos de Shaista seguem os ensinamentos do profeta à risca. Mais do que isso, como pashtum, eles submetem-se a um código de conduta tribal anterior e muito mais restritivo para as mulheres do que o Islã, o pashtumwali. Shaista foi entregue em casamento, pelo próprio pai, para o cunhado, que também herdou as três pequenas propriedades do casal, em Kandahar, Ghazni e Zabul.

A história seria suficientemente trágica, mas outro efeito da guerra no Afeganistão tornou seu destino ainda mais dramático. O cunhado de Shaista estava viciado em ópio, droga que tem como matéria-prima a papoula, cuja exportação financia a insurgência no Afeganistão. Desde o início da guerra, o país enfrentou uma escalada contínua da produção, sendo responsável hoje por 77% do ópio produzido no mundo, com 1,7 milhões de agricultores afegãos trabalhando nas plantações que ocupam áreas em 90% das províncias do sul, como Kandahar.

O vício do cunhado era motivo de brigas constantes entre ele e o marido de Shaista. "Eu sabia de tudo muito antes, de todos os crimes que ele já havia cometido para comprar a droga. Meu medo era que acabasse por vender a mim e a meu filho. Então, uma noite, eu fugi", conta. Shaista passou nove dias nas montanhas. Segurava seu filho nos braços com tanta força que chegou a abrir feridas em sua pele. Acabou num hospital, onde passou dois meses, e há pouco mais de um ano vive escondida em um abrigo para viúvas mantido pela organização Crescente Vermelho em Cabul.

Se um dos oito irmãos mais velhos a encontrar, eles muito provavelmente a matarão por abandonar o segundo marido e, no entendimento deles, desonrar a família. No prédio de dois andares onde Shaista mora vivem 54 viúvas com histórias tão ou mais trágicas do que a sua. O número das que procuram abrigo aumenta na medida dos conflitos. "Só no mês passado, trinta mulheres vieram bater em nossa porta, principalmente das províncias do sul, como Kandahar e Helmand, onde os conflitos são mais itensos", diz o chefe do abrigo, Shawaly Wadat. "De cada dez que chegam aqui, nós ficamos com uma. Não temos mais espaço."

As que conseguem abrigo têm sorte - milhares de outras acabam nas ruas de Cabul, mendigando. No alojamento escuro e frio, com alguns tapetes e cobertores para dar algum aconchego, as viúvas podem ficar com os filhos de até 10 anos; em outro edifício vivem os órfãos mais velhos, com idades de até 18 anos. Shaista não viveria sem o pequeno Hamid Karzai, de 6 anos. O nome e sobrenome foram escolhidos em referência ao presidente do Afeganistão. "Eu quero que ele seja um homem estudado, um político, e não um Taleban. Por isso, o nome", ela explica. "Hamid quase morreu nos meus braços, mas sobreviveu comigo a tudo o que atravessamos, por isso sei que ele é um menino forte e pode chegar tão longe quanto quiser em sua vida".

Publicidade

Karzai, o presidente, é também um pahtum de Kandahar, embora tenha passado parte de sua vida no exterior. Kandahar é um centro da insurgência afegã desde a invasão soviética, em 1979. Foi quando bin Laden chegou ao Afeganistão com a missão de financiar, inspirar e treinar, em sintonia com os serviços de inteligência do Paquistão (ISI) e dos EUA (CIA), milícias afegãs para a jihad contra os laicos comunistas. Com a saída dos russos, o Afeganistão mergulhou em uma guerra civil, abrindo o vácuo ideal para a ascensão do Taleban. Bin Laden, antes um aliado, tornou-se o inimigo da América, quando transformou a jihad em uma bandeira global contra não-muçulmanos, principalmente os EUA. Sob proteção do Taleban, o terrorista voltou ao Afeganistão em 1998, sendo recebido em Kandahar pelo líder do grupo, Mulá Omar. Acredita-se que Omar esteja hoje escondido em Quetta, vizinha a Kandahar, mas já do outro lado da fronteira, no Paquistão.

Com a intensificação dos conflitos na última década, os estrangeiros no país passaram a viver em bolhas de segurança - complexos protegidos por imensas barreiras de concreto, arame farpado, barricadas e homens fortemente armados, veículos munidos de vidros à prova de balas e detector de explosivos - enquanto os afegãos se tornaram cada vez mais vulneráveis. São eles a principal vítima dessa guerra. "Inshallah (se Deus quiser) o destino do meu filho será diferente". Inshallah.

Texto publicado, parcialmente, no Estadão.

*

Comentários anti-semitas, islamofóbicos e anti-árabes, racistas, discriminatórios ou que coloquem um povo, raça ou religião como superiores não serão publicados. Tampouco ataques entre leitores ou contra o blogueiro. Pessoas que insistirem em ataques pessoais não terão mais seus comentários publicados. Não é permitido postar vídeo. Todos os comentários devem ter relação com algum dos temas do post. O blog está aberto a discussões educadas, relevantes e com pontos de vista diferentes.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.