"Che admitiria fracasso do comunismo, mas o atribuiria aos próprios aliados", diz biógrafo

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Por adrianacarranca
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Quando Jon Lee Anderson decidiu escrever a biografia de Ernesto "Che" Guevara, ele se mudou com a família para Cuba, ganhou a confiança de Adelaide March, mulher do revolucionário, e todos os dias visitava a casa onde o casal viveu até Che ser capturado, em 8 de outubro de 1967, e executado no dia seguinte. O biógrafo teve acesso ao arquivo pessoal do argentino que se tornou herói da Revolução Cubana após conhecer Fidel Castro na Cidade do México em 1955. Sofia, a babá dos filhos de Adelaide e Che - "um marxista implacável que amava sua família", na definição do biógrafo - passou a cuidar dos filhos de Lee Anderson e a viver em sua casa.

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A pesquisa para "Che, uma biografia" (Editora Objetiva) começou em 1991, ano em que Cuba começava a perder os subsídios que recebia da União Soviética. Desde então, o escritor acompanha os acontecimentos na ilha dos Castro. Nesta entrevista, por telefone, de Havana, ele analisa a reaproximação entre Cuba e EUA e declara: "(Se estivesse vivo) Che admitiria o fracasso do comunismo, mas o atribuiria aos próprios aliados (soviéticos). Nós fomos traídos por eles. É o que Che diria". A seguir, trechos da entrevista:

Qual o sentimento atualmente nas ruas de Havana? Para te dar uma ideia da confiança da administração (do presidente Barack Obama), há uma nova bandeira na intersecção americana em Havana sendo preparada para ser hasteada a qualquer momento e pela primeira vez em 54 anos. Tenho certeza de que há algo similar ocorrendo em Washington. Este é um momento muito saudável e positivo para Cuba. A atmosfera de esperança substituiu o estado de desespero existencial dos cubanos.

Com a recomendação do presidente Obama para que Cuba saia da lista de países patrocinadores do terrorismo, o que muda de concreto e quais os próximos passos na relação Cuba-EUA? O Congresso tem 45 dias para debater se aceita ou não a recomendação do presidente. A menos que algo inesperado ocorra, como os congressistas decidirem se opor ao presidente porque começou a temporada de campanha, eu acho que isso irá adiante. A decisão final, de qualquer forma, é do executivo. E não é apenas algo simbólico. Assim que Cuba deixar a lista, as relações diplomáticas poderão ser restabelecidas. Os cubanos nos EUA passarão a ter conta bancária, uma tecnicalidade mecânica bizarra que dificulta extremamente o funcionamento das relações entre os países. Ainda haverá os embargos a serem levantados e essa será uma briga grande. Mas, num nível bem prosaico, as coisas ficarão mais fáceis. Acho que ainda veremos a restauração completa das relações comerciais, diplomáticas, culturais e política entre os dois países.

Cuba se aproximará do modelo chinês? Eu acredito que será um modelo mais alinhado ao Vietnã, porque a China, como você sabe, manteve muito pouco da rede de proteção social para seu povo. Os cubanos gostariam de ver a essência do socialismo - educação, saúde, bem estar para os idosos e habitação - preservados, embora isso seja difícil mesmo para democracias sociais na Europa.

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Quais os maiores desafios para Cuba nessa transição? Cuba tem um número significante de profissionais treinados como médicos e professores, mas o desafio será garantir a eles salário suficiente para que não deixem o país. Um médico formado em Cuba pode fazer US$ 200 mil por ano fora; aqui ganham US$ 200 por mês. Sei que (os Castro) estão discutindo isso, mas acho que devem acelerar o processo ou perderão a inteligência do país. Há outros desafios, como profissionais não habituados a competir. Eles terão de adotar nova cultura de trabalho. E, principalmente, terão de decidir quanto dessa sociedade linda será mantida. Eles precisam de investimentos, isso é claro, mas quanto? Eles permitirão a entrada da cultura americana de campos de golf, franquias e restaurantes de fastfood? Os cubanos acabarão virando faxineiros do McDonald's ou terão suas próprias redes? São grandes questões para um país à beira de uma grande mudança.

O restabelecimento das relações com os EUA é uma vitória ou um fracasso para a cúpula em Cuba? Ambos e para ambos os lados. E essa é a beleza deste momento. Ambos podem reivindicar vitória e devem admitir fracasso. Do lado dos EUA, o presidente Obama admitiu o fracasso da política americana quando disse que a forma de lidar com Cuba não estava funcionando e deveria mudar. Foi uma decisão unilateral. Por outro lado, se o capitalismo voltar a Cuba, ele pode dizer: nós sempre soubemos que isso aconteceria. E acho que muitos americanos pensarão assim. Da parte de Cuba, eles podem dizer: nós ainda estamos aqui e vocês (EUA) vieram até nós e admitiram o fracasso de sua política, portanto, nós vencemos. E isso também é verdade, porque os Castro continuam no poder e são eles que estão permitindo a volta dos EUA ao país. Mas também é possível dizer que, para isso, eles tiveram de ceder ao capitalismo. Então, eu acho que a melhor atitude para ambos, e os líderes dos dois países adotaram essa postura nas declarações públicas, é olhar para o futuro, porque se ficarmos olhando para o passado nunca chegaremos lá. Não se trata de países que cometeram crimes de guerra e que terão de lidar com isso. Há dor e tristeza nessa relação e haverá reivindicações de ambos os lados, mas não são questões insolúveis. Elas podem ser negociadas. Não vejo as diferenças entre os dois países como intransponíveis. Não existe ódio entre EUA e Cuba, nunca houve. O discurso político foi muitas vezes feio, mas nunca houve real antipatia sectária entre americanos e cubanos. Eles têm muito em comum. Toda família cubana tem integrantes nos EUA.

Se estivesse vivo, o que Che Guevara pensaria deste momento? Na cabeça de Che? Boa pergunta... Che Guevara era um homem muito inteligente. Ele estaria com 86 anos hoje e eu acho que teria se mantido fiel a Fidel Castro todo o tempo desde a revolução até agora. Mas, em última análise, ele era uma pessoa inteligente. Acho que se preocuparia em perder certos aspectos da revolução social. A ideia de que foi tudo em vão seria muito dolorosa para ele, assim como para qualquer um dos que lutaram pela revolução, como Fidel, particularmente. Raúl é mais pragmático. Ele quer que as coisas funcionem. Para Fidel, assim como o seria para Che, é mais difícil ter de admitir derrota para as forças do mercado, em que especuladores estarão de volta e cubanos circularão com correntes de ouro ouvindo hip-hop americano nas ruas de Havana. Isso seria doloroso demais para Che. Acho que é muito importante que alguma coisa do socialismo pelo qual eles lutaram tão duramente seja preservada. Então, acho que Che teria sentimentos contraditórios, mas ele os teria tido nos últimos 20 anos e não só agora.

Che admitira a essa altura o fracasso do comunismo? Veja, Che era um visionário, nem mesmo Fidel acreditava na revolução como ele. Ele tentou convencer os soviéticos a pagar pela industrialização de Cuba nos anos 1960, para que Cuba pudesse ser autossuficiente dentro do regime socialista e para realmente construir o comunismo. Mas ele se deu conta de que os soviéticos nunca o fizeram realmente. Então ele diria: olhe, sim nós fracassamos, mas foi por causa de nossos próprios aliados que fracassamos. Eles não investiram em nós. Nós fomos traídos por eles, é isso o que Che diria. E, se ele tivesse sobrevivido, eu acho que ele continuaria a lutar pelo socialismo verdadeiro e por parceiros que pudessem desenvolver Cuba, além da economia do açúcar, e acabar com sua dependência como satélite (da URSS). Che tentou isso com os soviéticos, mas eles nunca o ouviram. A União Soviética manteve Cuba como um país dependente e agrícola e este modelo fracassou. Então, eu acho que ele diria que o socialismo nunca foi verdadeiramente testado na ilha. Foi apenas uma questão de sobrevivência.

Faz alguma diferença para Cuba o fato de Obama ser um democrata e o primeiro presidente negro? Eu acho que isso facilitou as coisas. Desde o início, houve esperança de que as coisas seriam diferentes com Obama por sua origem. Quando Obama foi eleito, Fidel fez algumas declarações de boas vindas e acho que tentou apelar para a história social do presidente. Vimos isso novamente com Raúl. Mas houve também certa desilusão, porque Obama não fez nada no primeiro mandato para mudar a situação (com Cuba) e acho que eles pensaram que mesmo sendo um africano-americano, Obama só queria ser parte do sistema.

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Por que Raúl e Obama deram esse passo neste momento? Este é o segundo mandato de Obama. Ele enfrentou grandes dificuldades no primeiro mandato para fazer qualquer coisa. (A administração Obama) foi essencialmente uma equipe de resgate. Ele mal pode governar ou pensar em criar novas políticas, com tantas guerras no Oriente Médio e a economia em colapso. O presidente teve de fazer muitas concessões e medidas bipartidárias. No segundo mandato eu acho que ele se deu conta de que era agora ou nunca, se quisesse ser um presidente que faria história. Então, decidiu ir adiante com o Irã e Cuba. Eram oportunidades que estavam mais ao seu alcance. No caso do Irã, era necessário ter o país de volta à mesa de negociações para que ajudasse os EUA a solucionar o verdadeiro pesadelo que o Oriente Médio se tornou. Obama foi um visionário ao fazer isso. Cuba tem menos implicações estratégicas agora, mas era algo historicamente necessário a se fazer. Acho que ele enxergou a forma como o mundo vê a política americana em Cuba: como um gigante esmagando um rato. Independentemente da verdade, é assim que o mundo vê isso. Então foi uma coisa boa a se fazer, era necessário que fosse feito agora e não haveria custos políticos porque, pela primeira vez, as pesquisas mostram que a maioria dos cubano-americanos não apoia mais o embargo americano a Cuba. Antes, esta era uma questão que tinha peso nos votos na Flórida, estado importante para a política americana. Não mais.

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E da perspectiva de Cuba? Da perspectiva Cuba, veja, Raúl está com mais de 80 anos e, entre outras reformas, ele impôs a si mesmo um limite de mandato, decisão pela qual não teve o crédito que merecia. Ele disse que servirá dois mandatos e sairá em 2018. E os irmãos Castro acham que precisam resolver os problemas com os EUA enquanto estão no poder. Eles veem isso como uma obrigação histórica de sua responsabilidade. Raúl podia, é claro, continuar adiando isso, mas muitos cubanos - a família Castro, entre eles - estavam fartos. A economia não tinha mais como sobreviver. Quando Chávez morreu, eles perceberam que os anos de bonança na Venezuela acabariam e com eles o acordo de fornecimento de petróleo. E realmente tiveram corte de petróleo à metade, com o colapso da Venezuela. Os avisos eram claros. E a única forma de mudar isso era abrir a país e permitir as pessoas que se tornassem guardiães de suas próprias vidas, porque o estado já não pode fazê-lo. Eles precisavam tomar uma atitude e este é o momento certo.

* Uma versão reduzida desta entrevista foi publicada na edição impressa do Estadão no dia 20 de abril

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