Humberto Trezzi, gaúcho, 50 anos, mais de 40 prêmios de jornalismo, cobriu conflitos em Angola, Colômbia, Haiti, Líbia, Timor Leste. Nunca deixou de olhar para a esquina de sua casa. "É provável que a maioria dos brasileiros desconheça essa faceta de Porto Alegre, mas a capital dos gaúchos convive com uma epidemia de homicídios que há quase uma década cresce um pouco a cada ano", ele escreve no livro Em Terreno Minado (editora Geração), em que nos revela sua descoberta sobre o sangrento fenômeno das gangues do tráfico em disputa pelo território da cidade - 171 grupos, Trezzi listou, com a ajuda da psiquiatra Montserrat Vasconcelas. "O Iraque é aqui e os americanos somos nós, os habitantes que não moram na periferia", disse Montserrat ao repórter.
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Na sala da casa do bangalô, imagens de Nossa Senhora Aparecida dão um ar inocente à Firma -- como os traficantes chamam a boca de fumo. Mas, nos quartos, uma festa pagã se desenrola. Mulheres com shorts cavados e bustiês se estiram ao lado de rapazes chapados, bebendo uísque no bico da garrafa. Alguns dos jovens portam pistolas e as giram em torno do dedo indicador, brincando com a morte. As paredes exibem demônios grafitados, enquanto o som solta "Deixa a vida me levar", um dos maiores sucessos de Zeca Pagodinho. E eu ali, esperando uma brecha para entrevistar a quadrilha.
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Como um executivo de bem com a vida, Flávio acorda sem pressa, às 9 horas, em Porto Alegre. Toma um banho e prepara o café para a mulher. Bate um papo, beija as crianças e sai para o trabalho, às 11 horas. Em vez de uma pasta preta, uma pistola Taurus calibre .380 na parte de trás das calças, sob a camisa florida. Enche os bolsos com pentes carregados, quinze balas em cada um.
Flávio é gerente, mas não de uma empresa qualquer. É o encarregado de tocar a Firma, como os traficantes chamam a boca de fumo. Não gostam da palavra tráfico. Preferem "movimento", como se fosse uma causa -- e, também, pelo vaivém de viciados em busca de pó (cocaína).
Como membros de uma religião profana, os traficantes também descansam. A Firma fecha aos domingos -- melhor dizendo, na madrugada de sábado. Depois do último viciado, os funcionários da boca descem o morro até um salão de pagode situado ao lado do estádio do Esporte Clube Internacional.
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Trezzi se viu em meio a intensos bombardeios na Líbia, mas foi nessa esquina do mundo que é o Brasil que quase morreu duas vezes. Fez mais de 15 coberturas sobre a violência no Rio. Conheceu "a cidade maravilhosa pelos fundos", como faz um bom repórter. Foi buscar a notícia sobre a maior chacina ocorrida até então, em Vigário Geral, em 1993, com quem tinha sobrevivido a ela: os traficantes. Revelou detalhes do crime e nomes de policiais. O furo de reportagem repercutiu nos jornais cariocas e Trezzi foi promovido pelo então diretor de redação Augusto Nunes. Como prêmio, pediu para voltar ao Rio. Queria "conferir como está a favela no pós?massacre".
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O ambiente, lógico, é muito diverso daquele da época da chacina. Nada de repórteres, policiais, ONGs de Direitos Humanos... Só moradores caminhando, na dura rotina diária. O sol se põe à tardinha, jovens jogam bola num campinho de chão batido, o visual é até poético. Numa esquina, uma menina de uns catorze anos fuma um beque de maconha, estraçalhando a poesia e nos transferindo sem escalas de volta à dura realidade da favela.
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"Aqui" é o gatilho de uma submetralhadora Pistol Uzi, arma automática israelense do tamanho de uma pistola (daí o nome...). Só tinha visto em filmes. Agora estou ali, na mira do bandido. Num rasgo de lucidez, Ronaldo baixa a câmera e não faz a foto. Para quem conhece o colega, um baita sacrifício. Ronaldo é daqueles fotógrafos fanáticos, que leva câmera até no banheiro. Os criminosos caminham e nos cercam, sem pressa. Noto que levam pendurados fuzis AK?47, Colt AR?15, Remington e FAL.
Perguntam o que perdemos por ali. Nada, respondo. Explico que estamos atrás da "rapaziada do movimento", para atualizar a situação na favela, ver o que aconteceu após a chacina, entregar umas fotos. Eles parecem nem ouvir o que falo, estão paranoicos. Um dos bandidos pergunta se conhecemos alguém ali. Menciono "Stallone" e saco da bolsa do Ronaldo uma foto ampliada do rapaz que nos guiara pela favela, um dia após a chacina. Resposta errada, deduzo, pelo silêncio. Percebo que algo vai mal.
-- Esse aí já era. Vacilou -- resumiu um criminoso.
Fico tenso. Um racha ocorrera na quadrilha, imagino. Para nosso azar. A situação piora quando um dos traficantes, um sarará de cabelo amarelo, repara no cabelo escovinha do Ronaldo, curtíssimo, e desconfia.
-- Ih, rapaz, acho que tu é PM...
O fotógrafo diz que não é policial. O sarará insiste, apontando a Uzi para a cabeça dele e reafirmando: "PM, tu é PM...". Para meu espanto, o Ronaldo -- um dos sujeitos mais corajosos que conheço -- desafia o traficante:
-- Tira essa arma da minha cabeça, senão tu vai levar o maior pau da tua vida.
Rapaz... para o quê! Os bandidos apontam todas as armas para nós, agarram nossos braços e colocam para trás das costas. Discutem entre si.
Um deles, o sarará, grita:
-- Leva pra vala, leva pra vala!
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Em Terreno Minado é uma aula de realidade. Aos estudantes de jornalismo: antes de sair à esquina, leiam o livro de Trezzi. Aos que não são jornalistas: antes de sair à esquina, leiam o livro de Trezzi.
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Às segundas, o blog dedica seu espaço para a literatura de guerra, sejam os confrontos armados ou as batalhas cotidianas pela vida.