Uma década de terror

No twitter @AdrianaCarranca

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Por adrianacarranca
Atualização:

Fiquei dois dias sem Internet. O acesso é lento e cai a toda hora, um desafio para os jornalistas. E isso porque a telefonia é o melhor serviço prestado no Afeganistão, desde a chegada dos estrageiros. Vive-se (literalmente!) na lama nesse país, mas com acesso ao mundo desenvolvido - restrito à elite afegã, é claro! (os mulás, o Taleban, os líderes tribais, os senhores de guerra, os funcionários do governo, embaixadas, bases militares e redações estrangeiras)

Todo o resto segue sem acesso a nada, nem televisão. Às vezes, vêem-se crianças carregando aqueles carrinhos de construção com uma bateria pesada, que eles levam para carregar para as suas TVs à válvula! As casas, as ruas não têm energia elétrica. A cidade não recolhe o lixo das ruas. Saneamento básico não existe para a maioria; as crianças brincam onde o esgoto corre à céu aberto.

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E isso é Cabul, com seus quatro milhões de habitantes e outros milhares de expatriados, que atravessam as ruas esburacadas, enlameadas e escuras da capital afegã em seus potentes 4x4 protegidos por vidros à prova de bala e seguranças particulares armados até os dentes. Será que eles não vêem que sua presença aqui não está fazendo a menor diferença na vida do povo local? Os afegãos se perguntam: onde foi parar o dinheiro da prometida reconstrução? O que essa gente toda está fazendo aqui?

E eu leio no Afghanistan Times (é sério!), meu companheiro de todas as manhãs, que o presidente Hamid Karzai deu uma entrevista coletiva para anunciar que o Afeganistão e os Estados Unidos estão elaborando mais um "draft plan" (o esboço de um plano) para o seu país. Um esboço? Dez anos depois?

Daqui a 150 dias, no dia 11 de setembro de 2011, a ofensiva estrangeira no Afeganistão, liderada pelos Estados Unidos e da qual fazem parte 41 nações desenvolvidas, entrará no 10º ano. O saudita Osama Bin Laden, acusado de planejar os ataques terroristas às torres gêmeas do World Trade Center, continua desaparecido, o Afeganistão segue mergulhado em miséria e violência, o Paquistão nunca deixou de dar abrigo à AlQaeda, o Taleban está de volta na maior parte das províncias afegãs, o terrorismo global é hoje uma preocupação maior do que era ontem.

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Em parte, é por isso que eu estou aqui, para entender de que diabos serve essa guerra sem fim!

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As duas últimas grandes guerras no Afeganistão têm uma lógica perversa: não tiveram nada a ver com os afegãos! Eles assistiram os comunistas avançarem sobre suas terras, depondo um regime que bem ou mal dirigia o país à modernidade. Nos anos 1960 e 1970, o Afeganistão era destino turístico de europeus, em busca de sol, clima de montanha, boa comida, a magífica arte afegã em tapetes, joias feitas com pedras preciosas locais como o lapis lazuli e porcelana; além de um certo liberalismo, num dos únicos países muçulmanos em que as mulheres da capital usavam saia e poiam sair sem nada sobre os cabelos - embora, nas áreas rurais, as tradições permançam quase imutáveis desde os tempos de Gengis Khan. O Hotel Intercontinental era famoso por sua piscina na cobertura com uma vista magnífica para a Hindu Kush. O hotel ainda existe, mas parece ter parado no tempo, naqueles tempos de glória. Hoje parece um lugar abandonado e cheira a mofo; a piscina está fechada.

Então, os americanos vieram para "salvar" os pobres afegãos da tiraria do Exército Vermelho da antiga União Soviética. Usando o Paquistão com escudo, os Estados Unidos recrutaram, armaram e treinaram homens afegãos dos vilarejos montanhosos e áreas rurais. Despertaram neles a ideia da jihad (resistência), usando a religião como propósito para a luta contra os laicos comunistas. Assim, surgiram os mujaheddin (soldados de Deus). Com a ajuda estrangeira e o domínio natural sobre a geografia montanhosa que cobre 85% do Afeganistão, eles não tiveram grande dificuldade em expulsar os russos. Livre do avanço da ameaça comunista na região, os Estados Unidos foram embora, deixando o país nas mãos armadas dos mujaheddin. Divididos em etnias e tribos, eles mergulharam em uma guerra civil pelo controle do país, deixando um vácuo no governo central ocupado rapidamente pelo Taleban.

Os jovens criados em madrassas prometiam dar fim aos conflitos e restabelecer a ordem. Não parecia má ideia aos olhos dos afegãos, àquela altura já cansados das lutas que já duravam havia quase duas décadas, desde a invasão soviética. Eles não conheciam ainda a tirania dos radicais islâmicos.

E, então, aconteceu o 11 de setembro. Bin Laden é saudita. Os terroristas do 11 de setembro eram todos árabes, com livre acesso ao Estados Unidos. Então, por que o Afeganistão? Suspeitava-se de que os Taleban teriam dado esconderijo a Bin Laden, mas o santuário de sua organização, a AlQaeda, era e continua sendo o Paquistão. Ainda que se aceite a invasão, a comunidade internacional, que deu seu aval à guerra, deve muitas explicações aos afegãos.

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Como cerca de 2 mil radicais islâmicos miseráveis e analfabetos conseguem resistir, há dez anos, ao poderio militar de 41 nações desenvolvidas? Por que o Paquistão segue recebendo assistência financeira dos Estados Unidos, apesar de continuar sendo a base da AlQaeda e de supostamente abrigar homens como mulá Omar, o líder Taleban? Por que um presidente ineficiente e mergulhado em corrupção como Hamid Karzai segue tendo o apoio da comunidade internacional? Onde foi parar o dinheiro para a reconstrução do país? Em que foi usada a ajuda humanitária?

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Essas questões certamente poderão explicar por que o povo afegão, que não suportava mais a tirania do Taleban e celebrou esperançoso a chegada das tropas estrangeiros em 2001, hoje se volta contra esses mesmos estrangeiros - há duas semanas, um condomínio da ONU foi invadido por civis na cidade de Mazar-e Sharif, no norte do Afeganistão, e sete funcionários da organização foram mortos, numa histeria coletiva que começou com um protesto contra a queima do Corão por um pastor americano ignorante.

Há dez anos dos atentados que mudaram o mundo, e do início de uma ofensiva global contra o terror, nós estamos menos protegidos hoje do que ontem. Por que?

Não são especialistas - com todo o respeito aos bons e necessários acadêmicos e estudiosos -, sentados em suas salas com ar-condicionado em alguma metrópole ocidental que vão poder responder a essas perguntas. Só os próprios afegãos, que viveram toda essa década em guerra e viram o mundo mudar do mesmo ponto de vista dos terroristas, é que detêm as respostas certas. Ou, pelo menos, alguma resposta, mais fiel à realidade local do que a retórica internacional. Suas vozes não deveriam continuar sendo ignoradas.

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