"Se o Sahel for santuário terrorista, a Europa será atingida por atentados"

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Por andreinetto
Atualização:

PARIS

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Ex-diretor da Escola de Guerra da França, o general Vincent Desportes, hoje professor do Instituto de Estudos Políticos (Sciences Po) de Paris, é um dos maiores especialistas em questões militares e políticas da França. Em entrevista exclusiva ao Estado, ele diz que seu país, sozinho, não tem os meios, nem o interesse de avançar sozinho no conflito no Mali. E mais: o Ocidente corre riscos de novos atentados terroristas se abandonar o Sahel aos jihadistas. A seguir, os principais trechos da entrevista.

A França pode sair vitoriosa do conflito no Mali?

O primeiro ponto é definir o que é sair "vitorioso", porque para tanto é preciso definir os objetivos da guerra. Normalmente, é estabelecer um estado de paz melhor do que anterior. Na região do Mali, há três grupos operando: AQMI, Ansar Dine e Mujao. Além disso, temos o MNLA, que tem reivindicações diferentes e, portanto, são problemas. No que diz respeito aos três grupos terroristas, eles estão engajados em uma luta até a morte, sem compromisso algum de negociação. Nesse caso, será necessário erradicar esses grupos. No segundo caso, do MNLA, será necessário estabelecer um diálogo nacional para restabelecer a integridade territorial do país e conseguir chegar a um governo eleito e legítimo. Ambos são objetivos realizáveis - mas não são objetivos da França, e sim de uma coalizão de países que compreenda que muito de sua segurança interna se definirá no Mali. Essa terá de ser uma vitória da Europa e provavelmente dos Estados Unidos.

Não é uma guerra franco-malinesa, então?

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Não é uma guerra franco-malinesa. A França lançou o ataque porque estava disponível, já que tem bases na África e tinha de fato a responsabilidade de se engajar imediatamente. Mas é determinante que outros países da Europa compreendam que esse também é seu problema. Eu diria que todos os países europeus, em especial os mediterrâneos Espanha e Itália, além, é claro, de Alemanha e Reino Unido. Espero que os países do Norte e do Leste também compreendam a importância do problema.

Ou qual será o risco para a Europa e para o Ocidente?

Se deixarmos que um santuário terrorista se crie no Sahel, onde ganham dinheiro com o tráfico da cocaína da América e de haxixe e com o sequestro de estrangeiros, é claro que cedo ou tarde as ameaças dos grupos terroristas contra o Ocidente acabarão por se concretizar. Então a Europa será atingida por atentados. Não é porque a polícia e os serviços secretos da Europa conseguiram evitar atentados até aqui que estamos em segurança para sempre.

É correto associar o Sahel ao Afeganistão? 

Não podemos dizer que seja a mesma ameaça. A Al-Qaeda é uma franquia. A AQMI, que foi originária do grupo GSPC - responsável por 100 mil na Argélia na década de 90 - não é formada por talibãs, que não atuam no Sahel. A ameaça é do tipo Al-Qaeda. A AQMi não é formada pelas mesmas pessoas, mas pelas mesmas ideias. Já em termos militares, o Sahel é um terreno menos difícil que o Afeganistão. Com exceção do oeste, não é um território montanhoso. Mas o Mali é uma região muito vasta - tem uma vez e meia o tamanho da França. A dificuldade vem dessa vastidão, de seu clima e da necessidade de manter o território conquistado. Porque a ameaça terrorista vai voltar a se esquivar, a escapar dos golpes que lhes infligirmos.

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A França tem meios de realizar uma guerra longa na região?

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A França não tem os meios, nem tem o interesse. Hollande disse que é preciso erradicar essa ameaça. Mas cabe às forças africanas acabar com ela, não à França. Essa missão existe há muito tempo e, por ora, essas forças precisam do apoio ocidental. A força africana só será operacional dentro de muito tempo, porque hoje seus soldados são mal-equipados e mal-treinados. Será preciso equipá-los, treiná-los, reforçá-los com 5,5 mil, 6 mil homens, antes de colocá-los em condições de combate. São essas forças que terão de recuperar o norte do Mali. Isso vai levar provavelmente alguns meses. Soldados de Burkina Faso e Senegal, por exemplo, não tem o hábito de lutar no deserto. Além disso, o Sahel vai entrar na estação de calor, que vai chegar a 45, 50 graus até maio, tornando as operações muito difíceis. Logo depois, vamos entrar no período de chuvas. A meu ver, as operações sérias não poderão ser executadas antes de setembro ou outubro. Antes disso, teremos de tentar atingir as forças terroristas por armas aéreas.

Qual é o papel da Primavera Árabe nesse conflito? 

Antes de mais nada, o Sahel era uma região propensa ao conflito, em particular no caso do Mali, porque sempre houve tensões entre o norte e o sul do país, porque o norte é subdesenvolvido. A Primavera Árabe reavivou as brasas. Mas o elemento que detonou o que se passa foi a guerra na Líbia, que levou milhares de mercenários tuaregues líbios a retornarem ao Mali e, aproveitando-se de sua força militar superior à força militar do Mali, para tomar o poder no norte. Quando voltaram ao país, eles dispunham de equipamento pesado, com milhares de armas antiaéreas e canhões de 23 milímetros. É o arsenal da Líbia que está em poder dos tuaregues e que resultou no corte do Mali em dois. Com esse arsenal, os grupos terroristas da região - AQMI, Ansar Dine e Mujao - foram reforçados por esse arsenal a céu aberto em que a Líbia se transformou. Eles expulsaram os berberes e o MNLA da região e desde então impõem a sharia.

Os líderes mundiais já parecem compreender que não haverá um final rápido para o conflito no Sahel, não?

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Sim. O presidente François Hollande, por exemplo, já disse que permanecerá o tempo que for necessário. O Ministério da Defesa da França também diz que será um conflito de longo termo. Não sabemos quando o norte do Mali será reconquistado. E, depois da reconquista, deverá haver um processo político de estabilização e de desenvolvimento do país.

Os últimos conflitos, como no Iraque e no Afeganistão, deixaram claro para o Ocidente que uma intervenção militar sem apoio após o conflito para a reconstrução do país não é suficiente, certo? 

Absolutamente certo. A guerra não é só a batalha, mas é a soma da batalha e do restabelecimento da paz. A responsabilidade do Ocidente é seguir em frente após a intervenção militar. Este foi, aliás, o problema da Líbia. Participamos da primeira parte, a batalha, que acabou com a morte de Kadafi, e não levamos ao fim a reorganização do país e sua estabilização. Só nos preocupamos com a primeira parte, a guerra, e não com a segunda, a paz.

 

 

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