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Cenário: Trump põe a paz em risco ao fazer do 'uma China' moeda de troca

Presidente eleito ignora as sutis, mas extremamente significativas, diferenças entre a política americana de 'uma China' e o prinício de 'uma China' chinês

Por Redação Internacional
Atualização:

Steven GoldsteinTHE NEW YORK TIMES O presidente eleito americano, Donald Trump, disse que considera a política de "uma China" moeda de troca a ser usada para negociar outras coisas de interesse dos EUA em relação à China. Suas palavras: "Não vejo por que deveríamos nos ater à política de 'uma China', a menos que a usemos em outros assuntos, incluindo comércio. Temos sido atacados pela China com desvalorizações da moeda; ela nos taxa pesadamente nas fronteiras, enquanto nós não a taxamos; está construindo uma fortaleza no meio do Mar do Sul da China, que não deveria construir; e, francamente, não está nos ajudando com a Coreia do Norte". Dito de outro modo, para ele, a política de uma China não é tão importante - é só um fator de negociação, como muitos outros.

Chancelaria chinesa pediu que os EUA não permitam que a delegação de Taiwan participe da posse de Trump, na sexta-feira (EFE/Ritchie B. Tongo) 

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Então, Trump está certo? Não. O que é importante é que a relação entre a República Popular da China (RPC) e Taiwan é uma questão ambígua, na qual a China afirma que Taiwan é parte de seu território, mas admite, até o momento, que Taiwan continue existindo.

Quanto a Taiwan, também tem interesse em não deixar muito claro seu relacionamento com a China. Tanto a China quanto os Estados Unidos compartilham da noção de "uma China", mas entendem de modo diferente o que isso significa. Mexer nesse status quo poderá levar a um conflito militar total entre os EUA e a China sobre uma ilha que os dois veem como vital para seus interesses nacionais e cuja condição única eles têm conseguido administrar até agora. Que significa de fato "uma China"? Para os chineses, significa "o princípio da uma China". Desde o início da RPC, seus líderes têm sustentado que, historicamente, segundo os termos da rendição japonesa de 1945, Taiwan é parte do Estado soberano da China, governada pela capital chinesa no continente. Taiwan - que foi fundada pelo lado derrotado na guerra civil chinesa - é vista como uma ocupação ilegal do que restou de um regime vencido. Os chineses veem a retomada de Taiwan quase como um ponto sagrado da restauração da nação chinesa, uma vitória final do Partido Comunista e o fim da exploração do país por potências estrangeiras que teve início no século 19. A China estabeleceu o seguinte princípio: "Só existe uma China; o continente e Taiwan pertencem a uma só China; e a soberania e integridade territorial chinesas são indivisíveis". É por isso que Pequim exige dos Estados com os quais mantém relações diplomáticas que rompam relações oficiais com Taiwan e reconheçam seu governo como o único governo legal da China. Outros Estados - e organizações internacionais - que negociem com Taiwan são vistos como interferindo em assuntos internos chineses.

A legislação chinesa diz que o país pode usar a força contra atos de Taiwan que visem à independência ou à resistência à unificação. O crescimento militar chinês das duas últimas décadas teve por meta impedir Taiwan de separar-se ou, se necessário, usar a força para unificar a ilha e o continente.

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Foto de Trump estampa jornal de Pequim ( Foto: AP Photo/Ng Han Guan)

A política de uma China é radicalmente diferente quando vista pelos americanos. Nos anos 50, os Estados Unidos reconheceram o governo nacionalista derrotado de Taiwan como legítimo governo de toda a China e encorajaram outros países a fazer o mesmo.

Com o passar do tempo, propostas de que os EUA reconhecessem duas Chinas foram veementemente rejeitadas pela RPC. Quando os EUA normalizaram relações com a China, em 1979, cortaram relações diplomáticas e oficiais com Taiwan, reconhecendo a China continental como "único governo legal" da China. Os EUA também retiraram suas forças de Taiwan e deixaram expirar um tratado de defesa mútua com a ilha. A posição americana sobre o status de Taiwan ficou indefinida. Os Estados Unidos definem o conteúdo de sua política de "uma China" como consistente com os três comunicados oficiais sino-americanos da época da visita de Richard Nixon (1972); com o estabelecimento de relações diplomáticas e a tentativa de solucionar a questão da venda de armas, em 1982; e com o Ato de Relações com Taiwan, passado pelo Congresso em abril de 1979 para estabelecer um fundamento legal para as relações "não oficiais" com Taiwan depois de os EUA reconhecerem a RPC e se afastarem da ilha. Os EUA já deixaram claro que não consideram a entidade política Taiwan um Estado da comunidade internacional, no que concordam com a RPC. Mas não aceitam a afirmação de Pequim de que a Ilha de Taiwan, ou seu governo e seu povo, sejam parte da China.

A posição legal formal dos EUA é que o status da ilha é "indeterminado". Isso significa, estranhamente, que desde 1979 os Estados Unidos se relacionam com um governo que não reconhecem oficialmente, que por sua vez dirige um Estado cuja existência os EUA não admitem, situado numa ilha cujo status é indeterminado. Tais são as sutilezas da diplomacia internacional. Por um lado, os EUA respeitam a posição de Pequim de que Taiwan, para fins internacionais, não é um Estado; por outro, não aceitam a soberania de Pequim sobre o povo e o governo de Taiwan. Esse complicado balé diplomático tem consequências no mundo prático. Significa que a política dos EUA para Taiwan vem sendo conduzida pelos interesses americanos em relação à ilha, à RPC e à Ásia como um todo - mais do que pressionada pelas acusações da China de interferência nos negócios internos do país.

Desde 1979, sob a política americana de "uma China", um amplo e variado relacionamento foi desenvolvido com a ilha. Por exemplo, os EUA e Taiwan estão presentes no território um do outro, com privilégios e imunidades diplomáticas; as leis dos EUA sobre Taiwan aplicam-se "como se aplicavam antes do rompimento de relações"; os termos da maioria dos tratados pré-1979 foram mantidos.

Há ainda um significativo volume de comércio e investimentos mútuos e, segundo o Ato de Relações com Taiwan, os EUA podem fornecer armas defensivas à ilha e manter a capacidade de Taiwan de resistir a qualquer uso de força ou outra coerção que ameace sua segurança e bem-estar; após consultas entre o presidente e o Congresso, os EUA podem "determinar ações apropriadas" se houver tal ameaça. Ocorrem extensas consultas entre funcionários civis e militares dos dois países. O presidente de Taiwan está autorizado a fazer "escalas estratégicas" nos EUA quando a caminho de outros destinos, segundo as regras vigentes; funcionários americanos de nível ministerial têm visitado Taiwan. Finalmente, embora os EUA aceitem a posição de que Taiwan não seja um Estado soberano, apoiam a "significativa participação" da ilha em organizações internacionais em que se exige o status de país. Em suma, os Estados Unidos construíram um relacionamento mais próximo com Taiwan que com muitos Estados, e isso apesar da posição chinesa de que China e Taiwan constituem "uma só China". Acima de tudo, um país não vende armas ou mantém relações quase diplomáticas com uma subdivisão de outro Estado. Desde 1979, os Estados Unidos têm buscado preservar o status quo entre a RPC e Taiwan, afirmando que intervirão se qualquer dos lados fizer ações unilaterais que alterem esse status quo (por exemplo, se o continente tentar forçar Taiwan à unificação, ou se Taiwan se declarar independente). Os EUA são oficialmente neutros sobre como a RPC e Taiwan procurem resolver suas diferenças, sob a justificativa de que se envolver significaria interferir. Enquanto a posição americana é conduzida por uma variedade de interesses políticos, a da China é dirigida pelo desejo de uma unidade nacional que a liderança chinesa define como existencial e não negociável.

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Isso significa que a abordagem dos EUA ignora elementos essenciais da posição chinesa. Além disso, não apenas Washington propõe uma relação que contraria a política chinesa de uma China, mas aparentemente se colocou numa posição de estabelecer condições para a solução do conflito.

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A razão de isso não ter levado a hostilidades abertas é que todos os lados têm agido com contenção para manter uma paz muito frágil. Eles sabem muito bem como essas diferenças são sensíveis.

É por isso que a sugestão de Donald Trump de que a política de "uma China" seja uma moeda de troca que os EUA podem usar como quiserem é ao mesmo tempo errada e arriscada.

Por um lado, ela aparentemente ignora as sutis, mas extremamente significativas, diferenças entre a "política americana de uma China" e o "princípio de uma China" chinês. Por outro, põe em perigo a doutrina central da política americana na região - a manutenção do status quo.

A equipe de transição de Trump já se referiu a Tsai Ing-wen como "presidente de Taiwan". Isso solapa publicamente o único ponto da política de uma China no qual os EUA e a China realmente concordam - o de que Taiwan não é um Estado, embora esse ponto exponha claramente a realidade do quase relacionamento de Estado para Estado que a política americana de "uma China" oculta.

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Ao usar o status de Taiwan como instrumento de negociação, Trump está dobrando a aposta nessa estratégia perigosa. Os interesses nacionais vitais da China conflitam com a política dos EUA, e a estabilidade das relações é frágil porque todas as partes estão insatisfeitas com a atual situação. Se a futura administração persistir nessa sua posição, há o risco de uma forte desestabilização nas relações entre os dois países, e mesmo de uma guerra./ TRADUÇÃO DE ROBERTO MUNIZÉ DIRETOR DO TAIWAN STUDIES WORKSHOP E MEMBRO DO FAIRBANK CENTER DA UNIVERSIDADE HARVARD

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