Foto do(a) blog

Todos os caminhos levam a Berlim

Berlinenses vão às ruas protestar contra a vertiginosa especulação imobiliária

Especulação imobiliária em Berlim cresce vertiginosamente

PUBLICIDADE

Por Fátima Lacerda
Atualização:

Enquanto dois presidentes exercem seus podres poderes num Vale a Pena Ver de Novo da Guerra Fria e partem para um ataque no cenário que é a Síria em guerra civil já há 7 anos, 13.500 berlinenses foram para as ruas protestar contra a especulação imobiliária, contra os aluguéis de valores exorbitantes e contra a gentrificação, fenômeno que afeta uma região ou bairro pela alteração das dinâmicas da composição do local, tal como novos pontos comerciais ou construção de novos edifícios, valorizando a região e afetando a população de baixa renda local*. (Fonte: Wikipedia).

PUBLICIDADE

Berlim não é Paris

Até bem pouco tempo comparado a Paris, Barcelona e Londres, a capital alemã oferecia custo de vida bem mais acessível para quem quisesse iniciar um nova vida, uma nova etapa ou simplesmente visitar o polo cultural que é Berlim. Por uma falha crassa da política como mecanismo de controle de processos sociais e econômicos, os berlinenses se veem ameaçados. Não "somente" com a intrínseca cultura do "Kiez", o quarteirão em que se mora, mas também a permanente ameaça de ter que deixar o apartamento em que se vive há anos ou décadas, pertinho de onde o médico de confiança tem o consultório, a farmácia de homeopatia, onde o café favorito com a melhor torta da cidade e onde se encontram os amigos na padaria ou mesmo na esquina ao esperar o sinal ficar verde para poder atravessar a rua. Itens de profunda identificação urbana especialmente em Berlim, uma cidade que cresceu da junção de várias pequenas aldeias, vilarejos e que tenta na resistência em manter esse caráter, muito raro no Velho Continente.

Berlim e Paris tem semelhanças na percepção dos bairros e dos quarteirões. A capital francesa, com pouquíssimas exceções, porém, já perdeu charme, da ligação com a mentalidade bairrista pela avalanche de turistas e o que isso resulta na política de moradia. Paris é a capital com o maior número de visitantes na Europa. Berlim ainda tenta defender. Por vezes com mais. Por vezes com menos sucesso. Entretanto a rapidez vertiginosa dos especuladores imobiliários na capital, das administradoras que agem de acordo com as ganas dos proprietários transformou, especialmente, os bairros de Kreuzberg, Neukölln e Schöneberg em bairros de convulsão social e polos de gentrificação. Na prestigiosa Rua Arndtstraße número 13 em Kreuzberg, um edifício está quase totalmente abandonado, inclusive com algumas janelas cobertas somente por plástico. Alguns poucos moradores ainda teimam em resistir.

O medo constante em ser vilipendiado e vítima de quebra de contrato com valores acessíveis é um fantasma que se carrega no bolso para muitas pessoas. 93% dos berlinenses veem o direito à moradia como um direito humano, direito esse que vem sendo massacrado enquanto falta a vontade política para frear a gana dos especuladores.

Publicidade

"Vamos resistir juntos. Parem com a loucura dos aluguéis e parem com o deslocamento"

Apitos, batuques e muito barulho

Mesmo no sábado (14), em grande parte, chuvoso, os berlinenses não se deram por rogados. Grupos de pais com filhos, associações de proteção ao inquilino, associações de moradia coletiva, o partido Verde e muitas ONG's convocaram para a passeata sob o moti: "Resistir à loucura imobiliária" (em tradução livre). Coros de "Nós estamos aqui, nós fazemos barulho porque estão nos roubando nossas casas!"

"Moradia é um direito humano"

Pequenas lojas de frutas, padarias de especialidade turca e quiosques que vendem de um tudo estão sendo banidos da vizinhança. Em seu lugar, surgem firmas de advocacia e de seguros que alugam os imóveis pelo triplo do valor do contrato terminado ou cancelado pelo proprietário. Estrangeiros, refugiados (com ou sem pedido de asilo definido), mulheres solteiras, mulheres que criam filhos sozinhas e pessoas idosas são as mais afetadas pelo vertiginoso desenvolvimento do que acontece, especialmente, no bairro de Kreuzberg. Esse bairro, que outrora era lugar dos que prezaram a vida alternativa, berço de resistência política contra hierarquias e contra o establishment (mais do que todos os outros bairros de Berlim), polo de subcultura e cultura Underground, foi "descoberto" pelos especuladores que oferecem a elite "um clima alternativo com muito conforto" e decadência de por exemplo, poder entrar no apartamento para estacionar o carro. Esse Upgrade, aumento de padrão nos bairros resultam no aumento dos prédios vizinhos, dos blocos vizinhos e assim por diante.

Publicidade

No contrato estipulado pelo atual governo, a "Grande Coalizão" entre Merkel (CDU), os Social-democratas (SPD) e o Partido da Baviera (CSU) tem um item que promete "o frear do valor dos aluguéis" que proíbe locadores de cobrar mais do que 10% do aluguel do locatário anterior. Mas essa medida só vale para novos contratos de locação e não protege os inquilinos que tem contrato antigo e que se tornam, automaticamente, foco e vítima a ganância dos especuladores com itens protetores mínimos. Entre eles, o chamado "Espelho dos Aluguéis" (Mietspiegel, em alemão). Anualmente o Senado de Berlim faz uma estatística sobre o valor dos aluguéis cobrados e tira uma média. Quanto mais caros forem os aluguéis maior será o valor médio resultante na estatística, tendo desdobramento nos contratos antigos.

PUBLICIDADE

Cidade-Estado

Na Berlim em âmbito regional, o governo é formado por uma coalizão entre os Social-democratas e Os Verdes, esse último que tem o "direito do locatário" escrito em letras garrafais em sua bíblia programática, fracassam em proteger os inquilinos de serem vilipendiados até perderem a capacidade de resistir contra inúmeros constrangimentos, cartas quase em ritmo diário e difamações. O outro lado da moeda são edifícios em lugares prestigiosos de Kreuzberg que se encontram vazios e onde os moradores foram obrigados a desistir. Muitos proprietários mandam desligar a luz e/ou a calefação e deixam o prédio sucumbir até o último morador deixar o imóvel.

"Mais coração, menos lucro"

Na esquina da minha rua, por exemplo, um prédio de esquina com aproximadamente 40 apartamentos já se encontra vazio há dois anos e isso, com a falta de morada crônica que se tornou uma realidade em Berlim.

Publicidade

O cenário é sempre o mesmo: o edifício fica vazio até todas as questões jurídicas dos ex-inquilinos for zerada, os investidores fazem reforma e restauração custosas, alugam (na maior parte das vezes vendem) o imóvel por um valor astronômico. A mudança do cenário bairrista urbano também se torna visível, se num Kiez ou numa rua inteira passam a existir somente apartamentos para comprar. O público se torna outro. O custo de vida aumenta e o circulo vicioso segue.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.