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De Beirute a Nova York

Por que o Líbano, bastião do cristianismo árabe, está sem seu presidente cristão?

Relatos de Beirute - Parte 3

Por gustavochacra
Atualização:

Há um ano, o Líbano não tem presidente, cargo destinado aos cristãos maronitas. Quanto mais o tempo passa, mais cresce o temor de os cristãos do único país com identidade cristã no Oriente Médio perderem o direito de terem a Presidência, prevista em acordo entre as religiões.

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Como é a divisão religiosa no Líbano?

Apenas para ficar claro, o Líbano é uma nação sem maioria religiosa. Talvez seja o único no mundo, se não levarmos em conta os ateus. Há pluralidadesde diferentes religiões. Entre os cristãos, podem ser maronitas (majoritários), grego-ortodoxos, melquitas (grego-católicos), assírios, armênios (ortodoxos e católicos), protestantes, católicos romanos e outros. Podem também ser muçulmanos sunitas e xiitas, além de uma minoria alauíta. E podem ser drusos. No passado, até a Guerra Civil, havia uma proeminente e bem integrada comunidade judaica (haverá texto sobre o tema). Não há censo há décadas e não dá para saber as divisões.

Como é a divisão do Parlamento?

O poder se divide de uma forma que crie um equilíbrio. Metade do Parlamento é cristão, com subdivisões entre as diferentes denominações. Metade é muçulmana e drusa, com divisões entre as suas diferentes denominações. O mesmo se aplica ao gabinete ministerial.

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O presidente tem de ser cristão maronita; o premiê, sunita; e o presidente do Parlamento, xiita?

O presidente, por convenção, tem de ser cristão maronita, conforme escrevi acima. O premiê precisa ser muçulmano sunita. E o presidente do Parlamento, muçulmano xiita. Todos eles são escolhidos pelo Parlamento, eleito democraticamente - diante da Guerra da Síria, as eleições vêm sendo adiadas. Eu, por exemplo, por ter origem cristã-ortodoxa e cristã melquita (grego-católica), não poderia ser presidente, nem premiê e nem presidente do Parlamento.

Como é feita a escolha do presidente, do premiê e do presidente do Parlamento?

Normalmente, os membros da religião buscam um consenso e escolhem seu representante, sendo aceito pelos demais. Evitam figuras que criam polarização. Por exemplo, o presidente do Parlamento, que tem de ser xiita, é Nabi Berri, da mais secular Amal, não do Hezbollah, embora sejam aliados. O premiê a Tammam Salam, de uma tradicional e moderada família sunita libanesa, não Saad Hariri, que seria o líder sunita mais popular.

Quem são os principais candidatos a presidente do Líbano?

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No caso dos presidentes, os dois últimos, Emile Lahoud e Michel Suleiman, eram comandantes das Forças Armadas, outro cargo destinado aos libaneses. Desta vez, porém, os cristãos estão extremamente polarizados ao redor de duas figuras carismáticas e com histórias políticas desde os tempos da Guerra Civil (1975-90) - Michel Aoun e Samir Geagea. No fim do conflito, os dois travaram uma guerra entre diferentes grupos cristãos.

 Quem é Michel Aoun?

Aoun, ou o "general", como é conhecido, comandou as Forças Armadas do Líbano no fim da Guerra Civil. Lutou contra a Síria e também contra as milícias de Samir Geagea, conhecidas como Forças Libanesas. Depois, passou 15 anos no exílio por sua oposição à ocupação síria. Quando voltou, foi recebido como herói pelos cristãos. Mas os sunitas de Saad Hariri, junto com o druso Walid Jumblatt, temendo a força de Aoun, o deixaram de fora da coalizão anti-Síria. Sem alternativa, Aoun precisou se aliar ao Hezbollah e ao regime de Damasco, seus antigos algozes.

Quem é Samir Geagea?

Geagea, por sua vez, é conhecido por seus massacres na Guerra Civil do Líbano. Suas forças mataram um rival político, Tony Frangieh, também cristão, sua mulher, sua filha e seu cachorro - o filho, em Beirute, ficou vivo e é um importante aliado de Aoun. Ficou mais de uma década em um calabouço por seus atos na Guerra Civil. Mas os sunitas de Saad Hariri e o druso Jumblatt o soltaram em 2005 para ficar como rival de Aoun, embora sua popularidade entre os cristãos seja bem menor e sua imagem seja associada a massacres e a Israel - os dois não são mais aliados e hoje Geagea é próximo da Arábia Saudita.

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A quais coalizões eles pertencem?

Hoje Aoun integra a coalizão 8 de Março, junto com o Hezbollah. Isto é, uma coalizão que tem a maioria dos cristãos e quase a totalidade dos xiitas. Geagea integra a coalizão 14 de Março, que também possui um bom número de cristãos e quase a totalidade dos sunitas.

Por que nenhum deles consegue se eleger?

Os dois querem ser presidentes e nenhum deles tem maioria no Parlamento porque Jumblatt, o druso, se mantém neutro. Por um lado, ele teme Aoun presidente porque isso significaria um popular líder cristão no comando do país, enfraquecendo os drusos e especialmente a sua facção política. De outro, sabe que Geagea, que tentou matá-lo na Guerra Civil, também pode ficar incontrolável se assumir o cargo e certamente entraria em atrito muito forte com o Hezbollah e com os cristãos pró-Aoun. Também há a questão regional. A Arábia Saudita apoia a 14 de Março. O Irã e a Síria, a 8 de Março. O futuro da Guerra da Síria e as negociações envolvendo o programa nuclear EUA-Irã influenciam nas decisões.

Quais as alternativas?

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Uma alternativa seria Aoun tentar negociar com os sunitas de Hariri. Ambos possuem uma visão parecida para o futuro do Líbano. Juntos, nem precisariam dos votos do Hezbollah. Mas as conversas fracassaram. Outra saída seria um presidente neutro, como Jean Kahwagi, comandante das Forças Armadas, que talvez tivesse o apoio de sunitas, xiitas e drusos, mas provavelmente não dos cristãos pró-Aoun e pró-Geagea. Mas ele seria o terceiro general a fazer este caminho e poderia fortalecer muito os militares.

Por que o impasse é perigoso para os cristãos?

Com o impasse, o Líbano aos poucos se acostuma a viver sem presidente. O país não parou por causa disso. Se a briga persistir, talvez, aos poucos, comecem a questionar o cargo de presidente ser destinado aos cristãos. Isso apenas ainda não ocorreu porque os xiitas não aceitariam um presidente sunita e os sunitas não aceitariam um presidente xiita. Mais fácil ter um cristão ou não ter ninguém.

O Líbano é o único país com identidade cristã na região?

O Líbano não pode perder esta sua identidade cristã. É o único país do Oriente Médio onde o cristianismo impera. Israel é judaico, embora laico e com minorias religiosas cristãs, muçulmanas e drusas, e os demais são islâmicos, embora muitos sejam laicos, como a Síria, Egito, Argélia e Tunísia. O cristianismo nasceu na região e os cristãos por séculos foram maioria no Levante. A imigração e as guerras reduziram o seu número e hoje no Líbano devem ser menos de 40% - certamente, passa de 50% se contarmos a diáspora. Basta ver o Brasil, onde 9 em cada dez imigrantes ou descendentes de imigrantes libaneses são cristãos e somam 7 milhões (mais do que a população do Líbano). A ameaça do ISIS, também conhecido como Grupo Estado Islâmico ou Daesh, e a Al Qaeda.

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Guga Chacra, comentarista de política internacional do Estadão e do programa Globo News Em Pauta em Nova York, é mestre em Relações Internacionais pela Universidade Columbia. Já foi correspondente do jornal O Estado de S. Paulo no Oriente Médio e em NY. No passado, trabalhou como correspondente da Folha em Buenos Aires

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