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Direto da Europa

Catacumbas do Brasil: a carta de uma mãe

GENEBRA - A partir de hoje, abro meu blog para trazer relatos e documentos inéditos sobre o que ocorreu nas prisões brasileiras durante a Ditadura Militar. Esses arquivos dormiram nas prateleiras do Comitê Internacional da Cruz Vermelha por 40 anos, até que fossem abertos, recentemente.

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Por jamilchade
Atualização:

Recusando-me a deixar que essas violações sejam contaminadas pelo atual momento do debate político brasileiro, o blog trará a cada dia e durante toda a semana um caso guardado em Genebra.

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São relatos de um roteiro da barbárie e fazem parte de um dos acervos mais impressionantes da história do regime militar brasileiro.

Entre as dezenas de cartas e apelos que tenho encontrado nos arquivos mantidos em sigilo até agora, uma delas chamou minha atenção. É de uma mãe que, de forma desesperada, pediu a ajuda internacional diante da tortura sofrido por seu filho.

Escrita no dia 28 de outubro de 1970, essa carta ficou praticamente 46 anos em total sigilo. Ao endereça-la à entidade, a mãe, Lina Penna Sattamini, suplicava para que seu conteúdo não fosse divulgado, sob o risco de sua família ser morta.

No caso da carta de uma mãe desesperada, ela conta que seus familiares passaram 24 dias buscando o filho, Marcos, por todas as prisões de São Paulo. Mas o achou finalmente num hospital militar, moribundo após tortura na OBAN.

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Marcos, segundo ela, foi "brutalmente espancado". "Quando ele já não podia mais aguentar (porque havia desmaiado ou entrado em estado de convulsão), ele era amarrado a uma cadeira para assistir outros presos serem torturados", diz o relato da mãe, a partir do que foi contado por outros presos.

No hospital desde maio de 1970, tentaram forçar a família a reconhecer os problemas de Marcos como epilepsia, e não como resultado da tortura. No dia 6 de julho, porém, foi novamente levado de volta para OBAN e torturado.

Quando Lina finalmente consegui vê-lo, depois de 87 dias, ela o descreveu como "inválido". "Sua perna esquerda está paralisada. Sua pálpebra direita está totalmente fechada e o lado esquerdo está apenas meio aberto. Seu corpo se move em pequenas convulsões o tempo inteiro. Ele tem dificuldades para engolir, portando sua voz está mais grave e todo "r" é pronunciado com um sotaque francês. (Eu consultei um neurologista que disse, sem vê-lo, que os sintomas parecem o de um coágulo no cérebro, provavelmente causado por uma pancada)".

Ele contou à mãe que "além de ter apanhado quando preso, ele recebeu fortes choques elétricos em suas orelhas, boca, pernas e testículos."

Na segunda vez que foi levado à OBAN, "ele foi colocado ao lado da menina que estava sendo torturada". "De noite, ele disse, era horrível ouvir os gritos de dor dos outros sob o mesmo 'tratamento'. Quando disseram a ele que iria assistir à menina recebendo choques elétrico na vagina, ele desmaiou. Ele não se lembra muito depois disso. Ele foi deixado na cela por três dias, inconsciente, sem comida ou atenção médica", contou a mãe.

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"Quando consciente novamente, Marcos tinha amnesia total. Ele achava que estava num navio indo me encontrar nos EUA. Choques elétricos foram aplicados, Após o primeiro, ele voltou a 1966, e apenas depois do terceiro ele voltou a 1970", relatou.

Marcos não era o único a temer os choques. Na carta, Lina conta outros casos de pessoas traumatizados pela tortura. Alguns chegavam a colocar suas vidas em risco, apenas para evitar o sofrimento dos torturadores. "Um homem, de 53 anos, com medo dos choques, abriu seu estômago com uma navalha e, quando levado aos torturadores, colocou para fora seus intestinos e quase morreu", completou Lina.

 

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