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É colunista do 'Estadão' e analista de assuntos internacionais. Escreve uma vez por semana.

Opinião|Índia muda leis para proteger mulheres contra estupros

Depois do estupro coletivo de uma estudante de 23 anos em um ônibus em Nova Délhi, que causou sua morte, em dezembro de 2012, e chocou o mundo, uma série de mudanças na lei e providências práticas foram adotadas para combater a epidemia de violência sexual na Índia. Os registros aumentaram de lá para cá mas, na interpretação de Rekha Sharma, integrante da Comissão Nacional para as Mulheres, isso ocorreu porque as mulheres estão mais encorajadas a denunciar os crimes, tanto pelo aumento da consciência quanto pela maior agilidade no registro dos boletins de ocorrência e nos julgamentos.

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Atualização:

Rekha se envolveu em uma polêmica com a ministra indiana do Desenvolvimento das Mulheres e das Crianças, Maneka Gandhi, por considerar que a violência sexual cometida pelos maridos deve ser punida como estupro. Maneka argumenta que isso seria incompatível com a cultura indiana. "Vai ser muito difícil fazer os homens e até mesmo as mulheres entender que estupro é estupro e, toda vez que ocorre, alguém morre por dentro", diz Rekha. "Temos de sensibilizar as pessoas."

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Nesta entrevista que me concedeu, Rekha explica como algumas tradições indianas reforçam a proteção da mulher e outras a expõem à violência doméstica. Ela observa também que países desenvolvidos, como Estados Unidos, Reino Unido, Suécia e Austrália, têm índices de registros de estupros bem mais altos que a Índia. E o Brasil, também. Aqui, foram 26,5 estupros por 100 mil habitantes em 2014; lá, 1,8. Então, a imagem da Índia tem menos a ver com números do que com a ocorrência dos estupros coletivos.

Depois do estupro coletivo de dezembro de 2012, os casos diminuíram na Índia?

Os registros de estupros aumentaram na Índia nos últimos cinco anos. Uma das razões atribuídas é a crescente consciência da lei, mais denúncias e melhor registro dos casos. O estupro não é mais considerado um estigma sobre a vítima e sua família. Portanto, as vítimas de estupros estão deixando de lado seu medo de serem marginalizadas pela sociedade. Agora, assim que uma vítima denuncia um estupro, um boletim de ocorrência é registrado. O ônus da prova foi transferido da vítima para o acusado. Devido a essa simplificação de procedimento, tem havido aumento nos registros. Também passaram a ser registrados os casos em que as vítimas consentem na relação sexual com base numa falsa promessa de casamento. De acordo com o Departamento Nacional de Registros de Crimes, foram registrados 36.735 estupros em 2014 (no Brasil, foram 47.646, e a população brasileira, 200 milhões, é menos de um sexto da indiana, 1,25 bilhão). Desses, 98% foram cometidos por alguém conhecido da vítima.

As autoridades adotaram medidas para prevenir esses crimes?

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Como resultado do estupro coletivo de 2012 em Délhi, o governo indiano implementou um sistema de tribunal ágil, para processar rapidamente os casos de estupro. O estupro coletivo de uma jovem estudante de fisioterapia em dezembro do ano passado provocou indignação nacional, forçando o governo a adotar medidas para aumentar a segurança das mulheres. Foi constituído o Comitê de Justiça Jagdish Sharan Verma (em homenagem a um jurista morto em 2013), para examinar possíveis emendas à lei penal de modo a acelerar os julgamentos e aumentar as punições dos acusados de ataques sexuais. Muitas recomendações do comitê foram adotadas em mudanças nas leis. O governo também melhorou a segurança no transporte público, aumentando o número de ônibus à noite e instalando aparelhos de GPS em todos os veículos. Foi ordenada a instalação de um centro de atendimento para queixas de estupro em pelo menos um hospital de cada distrito da capital. Criou-se a linha de telefone 181 para atender mulheres ameaçadas. A Lei de Proteção de Crianças contra Crimes Sexuais, de 2012, que prevê punições severas para autores de crimes contra crianças, foi posta em prática. Aprovaram uma nova leiem 2013 que considera estupro todas as formas de penetrações sexuais não-consensuais que violem a integridade física das mulheres, pelo pênis ou qualquer objeto ou parte do corpo, na vagina, na boca, na uretra ou no ânus de uma mulher, ou obrigá-la a fazer isso com outra pessoa, ou a colocar a boca em órgãos sexuais sem consentimento ou vontade da mulher. A lei anterior restringia a definição de estupro à penetração da vagina pelo pênis. O artigo também passou a se referir a "penetração em qualquer extensão". E a falta de resistência física não exime de crime. A pena é prisão de no mínimo sete anos, podendo chegar a prisão perpétua, e sujeita também a multa. Se houver agravantes, a pena mínima é de dez anos de prisão. Por exemplo, se o ataque sexual causa ferimentos que levem à morte ou a estado vegetativo persistente, ou em caso de estupro coletivo, a pena é de no mínimo 20 anos, podendo chegar a prisão perpétua ou a pena de morte. O condenado também tem de pagar as despesas médicas e de reabilitação da vítima. A nova lei obriga todos os hospitais públicos e privados da Índia e oferecer primeiros socorros e atendimento médico grátis a vítimas de estupro, sem esperar pela chegada da polícia. A lei elevou de 16 para 18 anos a idade mínima de consentimento. Qualquer atividade sexual com alguém com menos de 18 anos, independentemente de consentimento, passou a ser considerada estupro. Em novembro, a Alta Corte de Allahabad (no Estado de Uttar Pradesh) determinou que criança resultante de estupro tem direitos de herança sobre os bens do estuprador e de filho ilegítimo. Mas, se a criança for adotada, perde esses direitos sobre os bens do pai biológico. Uma emenda de 2015 na Lei da Juventude determinou que a partir dos 16 anos os jovens são julgados como adultos por crimes hediondos, como estupro e assassinato. Crimes hediondos são punidos com no mínimo sete anos de prisão.

Por que ocorrem tantos estupros na Índia? Há características culturais, sociais ou religiosas que tornam estupros menos inaceitáveis no país?

De acordo com os valores da cultura tradicional indiana, a palavra estupro é impensável.  Nossos valores nos ensinam a tratar uma mulher como mãe ou irmã, quando não é sua esposa. A palavra "namorada" apareceu muito mais tarde, mas perdemos esses valores em algum lugar. Ainda assim, nós, mulheres indianas, não somos cidadãs de segunda classe, cordeirinhas ou fracas, como a mídia ocidental nos retrata. Sim, temos um longo caminho a trilhar, mas não esqueça que tivemos nossa primeira-ministra (Indira Gandhi, de 1966 a 1977 e novamente de 1980 a 1984, quando foi assassinada) há muitos anos, enquanto que os Estados Unidos não aceitavam uma mulher como presidente. Se você compara os dados, muitos países estão piores que a Índia. Na Austrália, os registros de estupros por 100 mil habitantes são relativamente altos, embora estejam numa tendência decrescente, caindo de 91,6 no ano de 2003 para 28,6 em 2010. Já no Japão, o índice é de 1,2 por 100 mil; na Índia, 1,8 por 100 mil; no Bahrein, 4,6 por 100 mil; no México, 12,3; no Reino Unido, 24,1; nos Estados Unidos, 28,6; na Suécia, 66,5; e a África do Sul tem o maior índice do mundo: 114,9 estupros por 100 mil habitantes. (No Brasil, são 26,5)

A senhora tem argumentado que a violência sexual cometida pelo marido deve ser punida como estupro, mas a ministra do Desenvolvimento das Mulheres e das Crianças, Maneka Gandhi, considera isso impróprio para a cultura e a realidade indianas. Como esse paradigma pode ser mudado?

O estupro marital não é crime pela legislação indiana, exceto durante o período de separação judicial do casal. A lei diz que "relação sexual de um homem com sua própria esposa, a esposa não sendo menor de 15 anos de idade, não é estupro". As autoridades argumentam que o contrato de casamento pressupõe o consentimento do sexo, e que criminalizar o estupro marital enfraqueceria os valores familiares na Índia. Mas as vítimas de estupro pelo marido podem recorrer à Lei de Proteção das Mulheres contra a Violência Doméstica, que entrou em vigor em 2006. Essa lei as protege do estupro marital e de outras formas de perversões sexuais, assim como da violência doméstica. Há muitos valores religiosos e sagrados vinculados ao casamento. Os homens são incapazes de entender que haja uma lei pela qual eles podem ser julgados por fazer sexo com suas esposas sem o consentimento delas, porque poucos se importam com esse consentimento. Eles pensam que é o direito deles fazer sexo com suas esposas, quer elas queiram, quer não. A ministra disse que será muito difícil entrar nos quartos e provar. Nossos valores do passado ensinavam "pati parmeshwar", ou seja, "o marido é Deus". Como pode Deus fazer algo errado? Temos que fazer o que Deus quiser. Pessoalmente, sou totalmente contra esses ensinamentos para as garotas. Qualquer coisa contra os desejos de uma garota não deve ser feito. Vai ser muito difícil fazer os homens e até mesmo as mulheres entender que estupro é estupro e, toda vez que ocorre, alguém morre por dentro. Temos de sensibilizar as pessoas. Muito tempo atrás, "Sati Pratha" (obrigação das viúvas de se suicidar) e "Bal Vivah" (casamento de crianças) também eram tradições, mas fizemos leis contra elas e erradicamos esses males da sociedade, da mesma forma como as mulheres muçulmanas começaram uma campanha de abaixo-assinado contra o "talak triplo" (pelo qual os homens se divorciam pronunciando a frase "eu me divorcio de você" três vezes), que é permitido pela religião delas.

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Opinião por Lourival Sant'Anna

É colunista do 'Estadão' e analista de assuntos internacionais

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