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Contra ilegais, Itália flerta com o fascismo

Leis que tornam crime imigração clandestina e discurso xenófobo expõem intolerância da sociedade italiana

Por Andrei Netto
Atualização:

Exatos 90 anos após Benito Mussolini lançar o Manifesto Fascista, a Itália está novamente diante do racismo. Com o objetivo de combater a imigração clandestina e a criminalidade, a Justiça italiana já está condenando os primeiros estrangeiros pelo recém-criado "crime de imigração". Por todo o país, exemplos de intolerância alimentam a polêmica sobre o governo de Silvio Berlusconi, mas também sobre a sociedade italiana, cada vez mais acusada de racismo.

 

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A controvérsia sobre o que vem sendo chamado de "deriva fascista" na Itália surgiu há três semanas, quando um bote com cinco imigrantes eritreus foi resgatado na costa da Ilha de Lampedusa, no Mar Mediterrâneo - a principal rota usada por imigrantes ilegais da África para entrar na Europa. Para trás, o grupo havia deixado 73 mortos, vítimas de 20 dias de sede e fome à deriva em águas territoriais europeias. A tragédia transformou-se em debate nacional depois que os imigrantes relataram ter sido avistados por embarcações que lhes negaram socorro durante o trajeto, contrariando uma lei marítima histórica.

 

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A polêmica cresceu depois que a Justiça de Florença condenou o primeiro estrangeiro à luz da nova lei de "imigração clandestina". Acusado de furtar uma bicicleta, Samer al-Shomaly, um palestino de 28 anos, foi condenado a pagar uma multa de 5 mil, pena sujeita à conversão em expulsão do país.

 

A condenação teve como base o Pacote de Segurança, aprovado pelo governo de coalizão de Silvio Berlusconi com o partido de extrema direita Liga Norte em 2 de julho. A legislação tornou-se símbolo do rigor da Itália em relação aos estrangeiros em situação irregular (leia quadro). O texto prevê, entre outras punições, a desapropriação de imóveis alugados a imigrantes ilegais e aumenta de 60 dias para 6 meses o tempo de detenção de clandestinos - palavra que virou sinônimo de "criminoso" no país .

 

A ofensiva contra os imigrantes desencadeou uma onda de críticas de intelectuais, organizações não-governamentais (ONGs), militantes dos direitos humanos, da Igreja e de políticos de oposição na Itália e na Europa. Laura Boldrini, alta comissária das Nações Unidas para os Refugiados, considera a lei abusiva. "Há na Itália um estímulo ao ódio que não pode ser aceito em uma sociedade democrática. É como jogar combustível no fogo", advertiu. "A opinião pública vem sendo alvo de uma campanha que confunde imigrantes com criminosos, ignorando que eles são importantes para a economia e para o bem-estar das famílias."

 

O diretor da Organização Internacional para a Imigração (OMI) para o Mediterrâneo, Peter Schapfer, tem posição semelhante: "A Itália não sabe lidar com o fenômeno da imigração porque o conheceu relativamente tarde. Há 10 ou 15 anos, ainda se considerava um país de emigrantes. Ainda não considero o conjunto da sociedade italiana racista, mas é verdade que grupos políticos e setores minoritários da sociedade têm um discurso racista, xenófobo e islamofóbico."

 

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Foco das críticas, Roberto Maroni, ministro do Interior, vice-presidente do Conselho Italiano e líder da Liga Norte, argumenta que o Pacote de Segurança reduziu a imigração em 92% em um ano. Usando o discurso clássico de seu partido, que costuma responsabilizar os imigrantes pela violência, pela pobreza e até pela transmissão de doenças no país, Maroni sustenta que a criminalidade teria caído 14% desde a vigência das medidas: "A única resposta que continuo a dar é ligada à queda da imigração clandestina. Ano passado desembarcaram 14,2 mil clandestinos e neste ano, 1,3 mil."

 

Maroni diz que a criação do "delito de imigração" é uma "medida de proteção" da Itália contra os clandestinos. A Liga Norte, que tem 8% dos votos no Parlamento, teve uma página na rede de relacionamentos Facebook bloqueada há dez dias. Criado pela seção do partido da cidade de Mirano, no norte do país, o perfil tinha como slogan o lema "Torturar clandestinos é legítima defesa!".

 

Um dos mais de 400 "amigos" da página era Umberto Bossi, fundador da Liga Norte e ministro do governo Berlusconi. Ao ser cobrado pela imprensa italiana sobre o conteúdo racista do perfil, Bossi evocou o apoio popular às suas causas: "O pecado que a Liga porta é o voto."

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Órgão para denúncias

 

Em 2008, uma lei proposta pelo Ministério do Interior da Itália passou a autorizar prefeitos a receber denúncias anônimas que levem à prisão de imigrantes clandestinos em todo o país. A"permissão" foi bem aproveitada por Leonardo Ambrogio Carioni, prefeito de Turate, na Lombardia, norte da Itália.

 

Desde o início do ano, um escritório abre as portas na cidade uma vez por semana para receber a "colaboração" popular contra estrangeiros que vivam sem documentos no país. O Escritório de Controle da Polícia Judiciária de Turate funciona na prefeitura, às quintas-feiras à tarde.

 

O objetivo é estimular "o cidadão a se tutelar", segundo argumentou Carioni ao Estado, por telefone. No dia em que a reportagem esteve na cidade, nenhum dos moradores apareceu para prestar queixa contra os estrangeiros da região, a maior parte marroquinos.

 

"Nossa administração adotou esse método para permitir à população evitar que clandestinos ponham em risco sua segurança", disse o prefeito, filiado à Liga Norte. Questionado sobre como encarava as críticas de racismo que sua administração vem recebendo, ele pediu para desligar e não atendeu mais a reportagem. Para Carioni, o novo órgão é um instrumento de combate à violência, não de perseguição de ilegais.

 

Entre os 9 mil habitantes de Turate, há cerca de 800 estrangeiros. Mas o número dos imigrantes em situação irregular é desconhecido.

 

Segundo funcionários da prefeitura, as delações normalmente são feitas por telefone e depois uma visita é programada. Entre os habitantes da região, as opiniões sobre o Escritório de Controle se dividem.

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"Acho justo. Há muitos imigrantes que não trabalham, nem estudam. Eles não fazem nada", afirmou uma comerciante que não quis se identificar. "Os marroquinos causam problemas."

 

Para o aposentado Giancarlo Rimoldi, de 75 anos, a iniciativa do prefeito tem fundo eleitoral. "Sou apolítico, mas não é difícil perceber que ele está só levando adiante uma bandeira da Liga Norte", afirmou.

 

Contrário à medida, Rimoldi disse não ter nada contra os estrangeiros. "Não sou racista contra os que vêm de fora da União Europeia porque os problemas da Itália não têm nada a ver com eles", afirmou. Mas, em seguida, o aposentado revelou um preconceito mais antigo: "Sou racista em relação aos sulistas. O problema da Itália sempre foi e continua sendo o sul, sustentado por nós."

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