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A compulsão une os líderes dos EUA e da Rússia

Trump e Putin começaram, metaforicamente, roubando um peru e, como ninguém fez nada, o comportamento deles piorou

Por Thomas Friedman (The New York Times)
Atualização:

Há muitos anos, Clinton Bailey, especialista em assuntos israelenses e beduínos, contou-me uma história sobre um chefe beduíno que um dia descobriu que seu peru favorito havia sido roubado. Ele reuniu os filhos e lhes disse: “Meninos, estamos correndo um grande perigo. Meu peru foi roubado. Quero que vocês o encontrem”. Os filhos ignoraram seu pedido.

Vladimir Putin e Donald Trump se encontraram pela última vez em novembro, à margem da cúpula Ásia-Pacífico no Vietnã Foto: AP Photo/Evan Vucci

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Algumas semanas depois, o camelo do chefe beduíno foi roubado. Os meninos foram até ele e disseram: “Seu camelo foi roubado. O que devemos fazer?”. E ele respondeu: “Encontrem o meu peru”.

Depois de algumas semanas, o cavalo do chefe foi roubado e, de novo, os filhos perguntaram o que deviam fazer. Sua resposta foi “encontrem meu peru”. Semanas mais tarde, a filha dele foi raptada. Seus filhos novamente perguntaram o que deveriam fazer e o chefe beduíno lhes disse: “Tudo isso é por causa do peru. Quando eles viram que podiam roubar meu peru, perdemos tudo”. Estou contando essa história, pois ela ajuda a entender como e por que não conseguimos refrear o comportamento abominável de Donald Trump e de Vladimir Putin.

Ambos começaram – metaforicamente falando – roubando um peru. E como nós não reagimos, o comportamento deles piorou, a ponto de Trump achar que pode atirar contra qualquer pessoa na 5.ª Avenida e Putin que pode envenenar um ex-espião em Londres e se safar impune.

O peru de Trump foi sua declaração de imposto. Durante a campanha, ele prometeu divulgá-la depois de a Receita Federal terminar sua auditoria. Mas, depois de sua eleição, ele declarou que jamais a divulgaria. Quando viu que podia não publicar sua declaração de imposto sem que nada sucedesse, ele percebeu que conseguiria se safar de qualquer coisa.

Sabia que se tivesse o beneplácito do Partido Republicano, eles baixariam a cabeça em qualquer situação – sexo com atrizes pornô, mentiras constantes, destruição do FBI, agrados a Putin. Quando você apaga uma grande linha vermelha, é difícil estabelecer outras.

Qualquer chefe beduíno que observasse a aceleração constante, em termos de amplitude e ritmo, das mentiras de Trump, diria: “Devolvam-me as declarações de imposto de Trump”.

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Mistério. Deve haver alguma coisa muito importante na declaração que Trump quer manter oculta. Talvez seja apenas a vergonha de as pessoas saberem que ele não é tão rico como afirma. Ou talvez exista algo mais fundamental – mostrando como ele é dependente de financiamentos dos oligarcas russos, a ponto de Putin ter influência sobre ele. Independentemente da razão, quando ocultou sua declaração e nada ocorreu, Trump entendeu que poderia transgredir qualquer regra, contar todas as mentiras que desejasse, e violar qualquer norma presidencial – e é o que tem feito.

O peru de Putin foi um caso ainda mais grave: foi a derrubada do avião da Malásia na Ucrânia, em 17 de julho de 2014, que matou 298 pessoas a bordo.

Uma investigação internacional comandada pelos holandeses – tendo por base, entre outras coisas, 150 mil telefonemas interceptados – concluiu que intermediários de Putin no leste da Ucrânia haviam pedido à Rússia o envio de um lançador de mísseis terra-ar AS-11. Ele foi enviado de caminhão através da fronteira russa para a Ucrânia, onde o avião malaio foi derrubado (provavelmente por erro, confundido com um avião militar ucraniano), e levado de volta à Rússia horas depois.

O Exército de Putin estava totalmente envolvido neste caso. Putin não apertou o botão daquele míssil, mas criou as condições para a derrubada do avião – e se safou impune, como se o avião tivesse sido derrubado por um raio. Ele foi punido com algumas sanções, mas sua cumplicidade esvaneceu na névoa das mentiras descaradas.

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Quem enfrentaria a Rússia, com todas suas exportações de gás para a Europa e todos seus oligarcas injetando dinheiro em Londres e comprando apartamentos em lugares como a Trump Tower em Nova York? Putin certamente também disse a si mesmo: “Acredita que me safei desta? Por que não envenenar um ex-espião russo em Londres com um agente nervoso, ou cometer um genocídio na Síria? Quem me impedirá?”.

Trump e Putin têm idêntico perfil. Sua estratégia é continuar provocando, continuar abusando, continuar mentindo, continuar negando, por mais implausíveis que sejam as mentiras – e nunca se desculpar. Porque, quando você mente numa escala industrial, isso esmorece todo mundo. As pessoas normais não se comportam desta maneira, e o descaramento absoluto as deixa desgastadas.

A lição que o chefe beduíno tentou ensinar a seus filhos é que ele podia viver sem aquele peru, mas não conseguiria conviver com o que roubar seu peru e não ser punido significava. Ou seja, quando as pessoas insistem em corroer as normas da sociedade, roubar – sejam perus ou a verdade – acaba se tornando a norma. Uma constante corrosão das normas é o que Trump vem fazendo para os Estados Unidos e Putin para o mundo. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO É COLUNISTA E GANHADOR DO PRÊMIO PULITZER

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