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A derrota de Evo

Foto do author Mario Vargas Llosa
Por Mario Vargas Llosa
Atualização:

A derrota de Evo Morales no referendo com o qual ele pretendia mudar a Constituição para eleger-se pela quarta vez, em 2019, é boa para a Bolívia e a cultura de liberdade. Insere-se numa corrente democratizadora que vem golpeando o populismo demagógico na América Latina, da qual são marcos importantes a eleição de Mauricio Macri na Argentina, contra o candidato da senhora Fernández de Kirchner; o anúncio de Rafael Correa de que não será candidato nas próximas eleições no Equador; a acachapante derrota – por cerca de 70% dos votos – do regime de Nicolás Maduro nas eleições para a Assembleia Nacional da Venezuela; e o desprestígio crescente da presidenta Dilma Rousseff e seu mentor, o ex-presidente Lula, no Brasil, pelo fracasso econômico e os escândalos de corrupção da Petrobrás que pressagiam também um fracasso catastrófico do Partido dos Trabalhadores nas próximas eleições.

Presidente boliviano governa o país desde 2006 Foto: JAVIER MAMANI / AFP

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Diferentemente dos governos populistas da Venezuela, Argentina, Equador e Brasil, cujas políticas demagógicas derrubaram suas economias, dizia-se que a política econômica de Evo Morales tivera êxito. Mas as estatísticas não mostram toda a verdade, a notar, o período enormemente favorável que a Bolívia viveu em boa parte destes dez anos de governo, com o auge do preço das matérias-primas. Desde que os preços caíram, o país decresce e é sacudido por escândalos e corrupção. Isso explica em parte a queda abrupta da popularidade de Evo Morales. É interessante notar que no referendo quase todas as principais cidades bolivianas votaram contra ele, e, se não fosse pelas regiões rurais, as menos cultas do país e também mais afastadas, nas quais é mais fácil para o governo falsear os resultados das urnas, a derrota de Evo teria sido muito maior.

Até quando continuará o singular mandatário jogando no “imperialismo americano” e nos “liberais” a culpa de tudo que dá errado? O último escândalo que protagonizou tem a ver com a China, não com os EUA. Uma ex-amante sua, Gabriela Zapata, que está presa, com quem teve um filho em 2007, foi executiva de uma empresa chinesa que vem ganhando suculentos e arbitrários contratos governamentais para construir rodovias e outras obras públicas num montante de mais de US$ 500 milhões. O favorecimento flagrante desses contratos ilegais, denunciados por um arrojado jornalista, Carlos Valverde, sacudiu o país e os desmentidos e explicações do presidente só fizeram comprometê-lo ainda mais no esquema. E serviram também para que a opinião pública se lembre de que esse é apenas o último caso de corrupção que, ao longo da década, vem se manifestando em múltiplas ocasiões, ainda que a popularidade de Evo conseguisse silenciá-la. Fica a impressão de que essa popularidade vai se apagando e já não bastará para que a opinião pública continue enganada, aplaudindo um mandatário e um regime que são um monumento ao populismo mais desenfreado.

Oxalá que, como os bolivianos, a opinião pública internacional pare de mostrar uma simpatia, em última instância, discriminatória e racista, que, sobretudo na Europa, cercou o suposto “primeiro índio que chegou à presidência da Bolívia”, uma das muitas mentiras que a biografia oficial de Evo propaga em todas suas viagens internacionais. Por que discriminatória e racista? Porque os franceses, italianos, espanhóis ou alemães que aplaudiram o divertido governante, que brilhava nas reuniões oficiais sem gravata e com uma desbotada chompita de alpaca, jamais teriam celebrado um dirigente do próprio país que dissesse as asneiras ditas em todo lugar por Evo (como a de que na Europa havia muitos homossexuais devido ao consumo exagerado de carne de frango); no entanto, ao que parece, para a Bolívia, esse personagem ignorante estaria bem. Os aplausos a Evo Morales na Europa me lembravam Günter Grass quando recomendava aos latino-americanos que seguissem “o exemplo de Cuba”, enquanto para a Alemanha e a culta Europa não propunha o comunismo, mas a social-democracia. Ter pesos e medidas diferentes para o Primeiro e Terceiro Mundos é, pura e simplesmente, discriminatório e racista.

Quem acredita que um personagem como Evo Morales sirva para a Bolívia (mas nunca para a França ou Espanha) tem uma pobre e injusta ideia daquele país do altiplano. Um país ao qual quero muito, pois ali, em Cochabamba, passei nove anos de minha infância, época de que me lembro como de um paraíso. A Bolívia não é um país pobre, mas sim, como muitas repúblicas latino-americanas, empobrecido por maus governos e políticas equivocadas dos governantes – muitos deles tão pouco informados e tão demagogos quanto Evo – que não aproveitaram os recursos de sua gente e seu solo – sobretudo, colinas e montanhas – e permitiram que uma pequena oligarquia prosperasse a ponto de que a base da pirâmide, as grandes massas quíchuas e aimarás, vivessem na pobreza. Evo Morales e os que o cercam não fizeram avançar em nada o progresso da Bolívia com seus acordos comerciais com o Brasil para exploração de gás e os empréstimos gigantescos provenientes da China para o financiamento de obras públicas faraônicas, muitas delas, sem sustentação técnica e financeira, que comprometem seriamente o futuro do país, uma vez que sua política de nacionalizações, vitimização da empresa privada e exaltação da luta de classes (e, frequentemente, de raças) incentiva uma violência social de perigosas consequências.

A Bolívia conta com políticos respeitáveis, realistas e valentes – conheço alguns deles – que, apesar das condições dificílimas em que têm de atuar, arriscando-se a campanhas ignóbeis de desprestígio por parte da imprensa e aparelhos de repressão do governo, ou à prisão ou exílio, vêm defendendo a democracia, a liberdade ultrajada, denunciando os atropelos da política demagógica, a corrupção e as medidas erradas e insensatas de Evo Morales e sua corte de ideólogos, encabeçados pelo vice-presidente, o marxista Álvaro García Linera. São eles, e dezenas de milhares de bolivianos como eles, a verdadeira face da Bolívia. Não querem que seu país seja pitoresco ou folclórico, uma anomalia divertida, mas sim um país moderno, livre, próspero, uma genuína democracia, como são hoje o Uruguai, Chile, Colômbia, Peru e tantos outros latino-americanos que souberam livrar-se, ou estão a ponto de fazê-lo, mediante o voto, daqueles que, como o casal Kirchner, o comandante Chávez e seu herdeiro, Nicolás Maduro, o inefável Rafael Correa, Lula e Dilma Rousseff, os estavam e ainda estão levando para o abismo.

A derrota de Evo Morales no referendo de domingo passado abre uma grande esperança para a Bolívia, e agora só depende da oposição, que comemora esse resultado, mantenha a unidade (precária, por desgraça) que a consulta gerou e não volte a dividir-se, pois esse seria um presente dos deuses para a declinante estrela de Evo Morales. Se essa oposição se mantiver unida e tão ativa quanto tem estado nas últimas semanas, a Bolívia será o próximo país latino-americano a livrar-se do populismo e recobrar a liberdade. / TRADUÇÃO DE ROBERTO MUNIZ 

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* É PRÊMIO NOBEL DE LITERATURA

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