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‘A escola cria ressentimento nos jovens americanos’

Professor da Universidade Estadual de Ohio e estudioso da violência em colégios dos EUA critica competição por ‘status social’ no sistema educacional do país

Por Cláudia Trevisan ,  Correspondente e Washington
Atualização:

Os ataques a tiros em escolas nos EUA estão se tornando um gênero próprio de violência, no qual os autores costumam seguir um “rito cerimonial” que envolve a compra de armas, o registro de suas intenções em diários, vídeos ou nas mídias sociais e a eventual discussão do assunto com amigos, diz Bryan Warnick, especialista em educação da Universidade Estadual de Ohio, que há cinco anos estuda o fenômeno.

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Todos esses sinais estavam presentes no ataque a uma escola secundária na Flórida na quarta-feira, no qual Nikolas Cruz matou 17 pessoas com uma AR-15. Warnick acredita que o sistema educacional dos EUA tem características únicas que estimulam a competição social e criam ressentimento nos que se sentem perdedores. O professor também vê choque entre o individualismo da sociedade americana e a disciplina das instituições de ensino

Milhares fazem vigília em Parkland em homenagem às vítimas do ataque ao colégio Marjory Stoneman Douglas Foto: REUTERS/Jonathan Drake

“Há casos de violência em outras escolas ao redor do globo, com facas ou outro tipo de armas. Mas o número de mortes e o dano que podem ser provocados são extremamente maiores quando você tem uma arma semiautomática.” A seguir, trechos da entrevista de Warnick ao Estado. 

• Por que os ataques a tiros se tornaram tão frequentes em escolas americanas?

Não sei se tenho respostas definitivas sobre isso. Mas estudando os relatos e narrativas em torno dos ataques, há elementos que se sobressaem. Há uma maneira única na forma em que as escolas americanas participam em uma espécie de “torneio de status social”. Além das questões acadêmicas, há forte ênfase em esportes competitivos e no fato de as escolas serem o local para relacionamentos românticos. Quando há uma disputa como essa, há vencedores e perdedores. Em relatos deixados por alguns atiradores, há ressentimento contra a escola, vista como o lugar em que vingança deve ser realizada. Ela cria ressentimento nos jovens americanos que perdem este “torneio por status social”.

• Em estudo de 2010, o sr. disse que os ataques seguem um ‘rito cerimonial’. O que isso quer dizer?

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Há elementos comuns que aparecem quando um estudante decide levar uma arma para a escola. Eles falam sobre isso com seus amigos, começam a colecionar armas, fazem vídeos e escrevem em seus diários ou se expressam nas redes sociais sobre o assunto. Isso não ocorre sempre, mas há um certo ritual que precede os ataques. Isso pode ser bom porque dá pistas para determinar se um estudante é uma ameaça. Mas também dá uma sensação de que ataques nas escolas estão se tornando um gênero próprio de violência. Há certas expectativas de como ele vai ocorrer, há certos papéis que os estudantes querem desempenhar. O estudante que realizou o ataque na Flórida mencionou nas mídias sociais que queria ser um “atirador profissional de escolas”, como se esse fosse um papel estabelecido na sociedade americana. Os sinais estavam todos lá. A documentação, as armas, as discussões nas mídias sociais.

• O sr. também escreveu que a disciplina pode estimular ataques. É isso mesmo?

Isso existe em escolas ao redor do mundo. O que acontece na sociedade americana é que há ênfase no individualismo e um questionamento da autoridade social. Quando você coloca o valor do individualismo na escola, na qual existe controle e coerção, há uma mistura volátil. Alguns estudantes desenvolvem ressentimento em relação à disciplina e passam a ver a escola como um lugar apropriado para a violência. Não há nada novo em forçar estudantes a fazer coisas na escola, mas quando combinado com o individualismo, isso pode levar a uma hostilidade contra a escola.

• O ataque é uma maneira de expressar a individualidade?

Sim. E vemos isso nos textos escritos por atiradores. Há algo dentro deles que querem expressar ou dizer e esse se torna o veículo pelo qual essa comunicação acontece.

• O fato de armas serem tão acessíveis nos EUA contribui para o fato de ataques a tiros serem uma das maneiras de expressão desse ressentimento?

Há casos de violência em outras escolas ao redor do globo, com facas ou outro tipo de armas. Mas o número de mortes e o dano que podem ser provocados são extremamente maiores quando você tem uma arma semiautomática. 

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• Quando esse fenômeno se tornou comum?

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Alguns ataques notórios ocorreram no fim dos anos 70 e houve um pouco mais na década de 80. Isso explodiu nos anos 90 e vimos crescimento contínuo desde então.

• O presidente Donald Trump reagiu ao ataque defendendo mais segurança nas escolas. Detectores de metal e pessoas armadas são a resposta certa?

Não discordo que faz sentido implementar medidas de segurança. Mas não há evidências que mostrem a eficácia de muitas das coisas sugeridas. Ter policiais nas escolas não parece funcionar e não há consenso sobre detectores de metal. Minha preocupação é que, se começarmos a militarizar o ambiente escolar, isso reforçará a mensagem de que esse é um lugar perigoso, um lugar em que se espera violência. Há o risco de fazer com que o ambiente da escola pareça inseguro, precário, o que pode contribuir para a violência, em vez de reduzi-la. Também precisamos olhar para o ambiente educacional, para a construção de laços de confiança e para a redução deste campeonato por status social. Mas é claro que reduzir o número de armas na sociedade americana ajudaria bastante.

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