A fome na Venezuela é real

Venezuelana que trabalhou com ajuda humanitária em países da África e da Ásia após desastres e guerra agora usa sua experiência em um contexto que nunca esperou ter de usar

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Por Francisco Toro
Atualização:

A última coisa que Susana Raffalli esperava era terminar trabalhando com ajuda humanitária em seu país, a Venezuela. Com mais de três décadas de carreira, Raffalli trabalhou com pessoas famintas em todos os lugares, da Indonésia afetada por um tsunami ao Paquistão e campos de refugiados na Argélia.

Nutricionista com treinamento em crises humanas, ela participou de grupos da Oxfam que tratam com rigor estatístico termos como "crise alimentar" e "fome". Agora, de volta a Caracas, sua cidade-natal, ela está aplicando sua experiência em um contexto que nunca esperou ter de usar.

Leidy Cordova, de 37 anos, com quatro de seus cinco filhos na cidade de Cumana, retrata a situação de muitas famílias na Venezuela Foto: Meridith Kohut/The New York Times

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"As pessoas vêm aqui e veem esses arranha-céus e não conseguem acreditar que há pessoas famintas aqui", disse por telefone de Caracas. Raffalli disse que, inicialmente, também foi difícil para ela acreditar. Mas, então, como chefe para a crise de alimentos na Venezuela da organização católica Cáritas, começou a aplicar os mecanismos de monitoramento humanitário usado no mundo todo.

O que ela descobriu foi chocante. A Cáritas pegou como amostragem mais de duas dúzias de áreas de risco nas paróquias mais pobres de quatro Estados e começou a pesar crianças com menos de 5 anos. Isso permitiu à Cáritas medir "a aguda desnutrição global" - o mecanismo-chave que as organizações de ajuda humanitária utilizam para saber a severidade da desnutrição.

Em outubro, 8,9% das crianças que eles pesaram tinham desnutrição moderada ou severa. O número era alto e continuou subindo. Em abril, 11,4% das crianças em áreas vulneráveis tinham desnutrição aguda - acima dos 10% que as agências de ajuda humanitária usam para declarar uma crise alimentar. 

Cada vez mais Raffalli está vendo as famílias adotando estratégias de adaptação à emergência, geralmente associadas a países afetados pela guerra. Ao menos 63% das famílias estariam apelando a "alimentos incomuns"; 70% pararam de consumir alimentos que consideram importantes; e 85% das famílias em áreas de risco dizem que estão comendo bem menos.

Pelo menos 57% das famílias das áreas de risco reduziram os alimentos essenciais e 44% passam o dia todo com apenas uma refeição. No total, 34% das famílias estão recorrendo a pelo menos uma estratégia de emergência - um sinal de falta de alimentação aguda - como vender bens para comprar comida, reduzindo gastos essenciais, buscando comida no lixo ou mandando as crianças pedirem comida nas ruas.

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Os debates ideológicos do governo socialista não são mais ouvidos pelas pessoas cujas barrigas estão roncando de fome.

Segundo a Cáritas, as pessoas agora têm uma dieta menos variada e trocam alimentos mais nutritivos pelos mais baratos. Em dezembro, 47% das famílias conseguiam comer ovos, mas agora apenas 38% conseguem. Carne e frango estavam no menu de 41% dessas famílias no fim do ano; mas agora estão apenas no de 33%. Mesmo margarina e óleo de cozinha estão fora do alcance de muitas pessoas - 64% usavam esses itens em dezembro, mas agora apenas 34% usam.

Nesse país tropical, tubérculos e frutas são os únicos alimentos que sobreviveram às indústrias de alimentos. Os tubérculos estão substituindo alimentos mais nutritivos como carne, ovos, leite e vegetais. Para Raffalli, os números falam por eles mesmos. Apesar de a Venezuela ter uma grande reserva de petróleo, sua imagem de um país de renda média caiu por terra com a dura realidade que as famílias enfrentam.

É por isso que, por meio da Cáritas, Raffalli está adotando o mesmo tipo de assistência humanitária para as crianças na Venezuela que ela ajudou a aplicar em Angola em 2005, após a guerra, e depois da grande seca e da crise política em Mianmar.

Mas enfrentar um governo que rejeita em admitir que há uma crise humana torna seu trabalho mais desanimador. A Cáritas tem conseguido atender crianças em pelos menos 32 paróquias, ajudando a alimentar 1.575 crianças diretamente e mantendo um sistema de alerta que permitirá respostas humanitárias relevantes de acordo com a escalada da crise.

Homem busca restos de comida entre o lixo de supermercado de Caracas Foto: REUTERS/Henry Romero

Esta é apenas a ponta do iceberg. A Venezuela necessita de uma ajuda humanitária sustentada para conter o atual número de mortes e impedir que uma geração inteira de crianças seja afetada. Mas o governo rejeita reconhecer essa realidade e teimosamente resiste em declarar emergência humanitária e aceitar a ajuda mundial, incluindo a dos EUA, que está sendo oferecida.

Com a aproximação da temporada de chuvas, e o surgimento sazonal de doenças infecciosas, Raffalli está especialmente preocupada: crianças desnutridas têm mais dificuldade para combater infecções.

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"Se você me dissesse dez anos atrás que eu acabaria fazendo em casa o mesmo trabalho que costumava fazer na África ou no sul da Ásia após um desastre, nunca acreditaria em vocês", disse Raffalli. Mas isso é a Venezuela de hoje.