A longa tradição da morte voluntária

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Por Agencia Estado
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Os três textos encontrados pelo FBI nos locais do drama do dia 11 de setembro são de dar medo. Em primeiro lugar, devido à maneira simples, pedagógica, racional como os textos distribuem suas ordens aos "mártires". Parecem o "manual de instrução" de uma máquina. Em seguida, pela altura dos sentimentos invocados por esses folhetos da morte: eles apelam para a fé, para a virtude, para a coragem, para a generosidade, para a abnegação, para o altruísmo. Recomendam até mesmo estarem bem limpos no momento da morte ("pois os anjos vão pedir o seu perdão logo que você estiver em estado de ablução e vão rezar para você"). Há um esforço para ler esses escritos como se fossem de um louco. Mas esse louco conseguiu criar e administrar uma organização, convencer dezenas de jovens com um raro nível intelectual (e provavelmente moral). Portanto, não poderíamos lê-los como profecias de um demente. Seu horror aumenta se os colocamos em uma longa e densa tradição. A morte voluntária, consentida com o objetivo de salvar o mundo, é uma prática antiga. E se o islamismo está freqüentemente presente nessa tradição, não convém esquecer que encontramos equivalências dessa prática em outras culturas, inclusive na ocidental. Para o islamismo, a "matriz" mais conhecida é a seita dos Hashashashin - que vem da palavra "Hashish" (erva seca que deu origem ao haxixe). A palavra "assassino" foi elaborada a partir dessa seita dos Hashashashin. Estamos em 1090: um xiita ismaeliano chamado Hassan ibn al-Sabbah, apelidado "o velho da montanha" domina uma fortaleza vertiginosa, Alamut, nas montanhas do Irã setentrional. Hassan declara guerra à doutrina sunita dos turcos Seldjoukides. E manda seus "fedayins" ("aqueles que se sacrificam") matar os hereges. Mais tarde, os "fedayins" participarão também das Cruzadas. Os "fedayins" desciam para a planície, misturavam-se a uma aglomeração (mercado, mesquita) e enfiavam um punhal no homem que o "velho da montanha" tinha designado. Após seu ato, os fedayins ficavam imóveis. Eram apedrejados pela multidão. Os textos da época dizem que eles sorriam ao morrer. Segundo algumas pessoas, o "velho" de Alamut tinha descoberto um truque para cativar seus discípulos. Por meio de um subterrâneo, podia-se atingir um lugar semelhante às descrições sobre o Paraíso, com árvores, flores, fontes, frutas e mulheres magníficas. O futuro mártir, atordoado com haxixe, era conduzido a esse "paraíso". Novamente drogado, era levado inconsciente à fortaleza. Lá, ele fazia descrições do Paraíso para seus companheiros. Nos textos encontrados pelo FBI, lia-se essa frase: "Os jardins do Paraíso te esperam, com toda sua beleza, as mulheres do Paraíso te esperam, elas te chamam: ´Venha, amigo de Deus´. Elas estão usando seus mais belos adornos". A seita dos "assassinos" durou muito tempo. No início do século 13, ela se ampliou do Irã até a Síria. Em 1256, Alamut foi tomada pelos mongóis, que a desmantelaram e não deixaram uma única pedra. Os mongóis destruíram também a fabulosa biblioteca que a seita havia constituído em dois séculos de existência, com livros apagados para sempre da memória dos homens, livros sobre o islã, "o imame escondido", a alquimia, os gnósticos... Mas se a Alamut é uma das matrizes do suicídio religioso, tal como vimos ressurgir no dia 11 de setembro em Nova York, aliás com semelhanças alucinantes, seria falso fazer da "morte voluntária" uma especificidade do islamismo (xiita, como o de Alamut, ou sunita, como o dos homens de Bin Laden). No tempo das guerra de religião, na Europa, alguns testemunhos nos gelam o sangue. Por exemplo, entre os anabatistas. Em 1553, a cidade de Munster, na Alemanha, foi enfeitiçada por dois místicos, Jean de Leyde e Rothmann. A cidade tornou-se um longo festim da morte. As mulheres e as crianças morreram de inanição, com o sortilégio de saber que logo seriam admitidas no "reino de Deus". Toda a cidade pereceu. As tropas da Igreja cercaram a cidade em delírio e a retomaram. Trezentos fiéis ainda sobreviviam - 300 fantasmas que se deixaram degolar. O chefe Rothmann foi puxado pelas aldeias por ursos. Em seguida, morto com um ferrete. Não deu um grito. Enfim, há uma outra família de mortos voluntários no Ocidente que se destrói, não pelo místico, por honrar a Deus, mas ao contrário porque são servidores extasiados ou desesperados do "Nada". O século 19 é cheio desses "mártires do nada". O genial F.D. Dostoievski nos deixou as mais precisas narrações disso: em "Os demônios", Kirilov suicida-se para mostrar que Deus não existe e, acrescenta ele, para se tornar Deus, pois terá sido, por meio de seu suicídio, o matador da ausência de Deus.

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