A nova era das armas nucleares

Embora o arsenal atômico global seja atualmente muito menor do que era no ápice da Guerra Fria, a possibilidade de ele ser usado está aumentando

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Por The Economist
Atualização:
Míssil é lançado de submarino: relatório americano acusou China de roubar segredos nucleares Foto: REUTERS

Em janeiro de 2007, Henry Kissinger, George Schultz, William Perry e Sam Nunn - dois secretários de Estado republicanos, um secretário de Defesa democrata e um chefe democrata da Comissão de Serviços Armados do Senado - propuseram um esforço global para reduzir a dependência de armas nucleares. O objetivo final, eles escreveram no Wall Street Journal, deveria ser remover por completo a ameaça que essas armas representam. 

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O artigo provocou uma reação impressionante. Visto por muito tempo como incomodamente utópica, a ideia de se eliminar armas nucleares foi subitamente assumida por pensadores estratégicos, acadêmicos e todo tipo de gente séria em matéria de política nuclear. No próximo ano, um grupo de pressão, o Global Zero, pretende fazer uma campanha para o total desarmamento nuclear. Seus objetivos foram endossados por muitos líderes de governo, atuais e antigos, e centenas de milhares de cidadãos.

Em abril de 2009, Barack Obama, falando em Praga, prometeu recolocar na mesa a redução das armas e, ao lidar pacificamente, mas com firmeza, com as ambições nucleares do Irã, dar novo alento ao Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP). 

Segundo ele, poderiam ser colocados em ação processos que levariam à renúncia mundial às armas nucleares no espaço de uma geração. Esse discurso, juntamente com sua habilidade de não ser George W. Bush, foi um fator-chave para Obama receber o Prêmio Nobel da Paz, meses depois.

No ano seguinte, Obama retornou a Praga para assinar um acordo sobre armas com a Rússia, o Novo Start, que reduziu o número de ogivas estratégicas posicionadas, permitindo 1.550 para cada lado. Seu cossignatário, o então presidente da Rússia, Dmitri Medvedev, havia endossado os objetivos do Global Zero. Um mês antes da revisão quinquenal do TNP, ele concordou com um plano de 64 pontos para reforçar a sustentação do tratado: a promessa de que todos os países podem compartilhar dos benefícios não militares da tecnologia nuclear; o acordo por Estados não possuidores de armas de não se tornarem Estados com armas; e o compromisso dos Estados com armas de buscar o desarmamento nuclear. Há esperanças de que, quando as partes do TNP se reunirem novamente, em maio de 2015, haja um progresso substancial a reportar.

Causa. O acordo de Obama com o Irã continua possível, provável até, mas ele dificilmente fortalecerá a causa de um mundo sem armas nucleares. O Irã continuará perto do limiar nuclear, conservando a capacidade de enriquecer urânio que - se pudesse se retirar do acordo - lhe permitiria criar material enriquecido o suficiente para produzir uma bomba dentro de um ano. 

Isso é mais do que o período de três meses estimado atualmente e longo o bastante, aparentemente, para os Estados Unidos e seus aliados prepararem uma resposta, se chegarmos a esse ponto. No entanto, não se trata de um passo enorme de recuo ou de avanço para a paz.

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E o acordo do Irã é o único item da lista de altas esperanças de 2010 que não foi a parte alguma. A cooperação sobre o Novo Start foi suspensa com a agressão da Rússia à Ucrânia; medidas prometidas de continuação foram abandonadas. Vladimir Putin, o antecessor e sucessor de Medvedev, aproveita cada oportunidade para louvar a proeminência nuclear de seu país e está comprometendo um terço do crescente orçamento militar da Rússia para reforçá-la.

A Rússia não é a única potência que está investindo em armas nucleares. Os EUA estão embarcando num programa de modernização de US$ 348 bilhões em uma década. A Grã-Bretanha está prestes a se comprometer com a modernização de suas forças, enquanto a França está a meio caminho do processo. 

A China está investindo pesadamente numa capacidade de contra-ataque nuclear. Em suma, não houve nenhuma tentativa de reduzir o papel das armas nucleares nas doutrinas militares e de segurança dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU, apesar de seus compromissos com o TNP. 

Uma iniciativa voltada para tornar as armas nucleares ilegais pela lei humanitária internacional, apoiada por mais de 150 países signatários do TNP, atraiu pouco ou nenhum apoio dos Estados com armas e somente falsas promessas de países satisfeitos com a proteção nuclear americana.

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A verdade é que o entusiasmo pela eliminação das armas nunca foi tão global como parecia. A superioridade dos EUA em armas convencionais, embora não seja facilmente convertida numa vitória duradoura em guerras reais, foi suficientemente marcante para tornar o desarmamento nuclear gradual atrativo para alguns profissionais de segurança e acadêmicos americanos. 

Alguns deles, ex-guerreiros da Guerra Fria, compartilhavam uma consciência culpada de quão perto o planeta chegou da destruição em razão de acidentes e erros de cálculo. Num mundo de bancos falindo e jihadistas bem-sucedidos, as armas nucleares pareceram, para muitos, anacronismos caros e perigosos.

Poder convencional. Em outros lugares, as coisas pareciam muito diferentes. As armas nucleares são uma maneira eficaz de compensar uma falta de poder militar convencional - como os EUA prontamente verificaram quando, nos anos 50, costumavam ameaçar com o uso de suas armas nucleares comparativamente sofisticadas para conter as amplas divisões de tanques soviéticos na Europa.

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O efeito nivelador é mais óbvio para os peixes pequenos. Algumas armas permitem que a Coreia do Norte intimide e subverta seu vizinho do sul bem mais poderoso (mas sem armas nucleares) e afronte os Estados Unidos. Uma das razões para a China continuar a prover ajuda energética e alimentar o país eremita é o medo do que o regime de Kim Jong-un poderia fazer com suas armas nucleares se entrasse em colapso.

O Irã queria uma opção nuclear em parte em razão do contraste dos dois outros países que figuraram com ele no chamado “eixo do mal”, criado em 2002 pelo presidente George W. Bush: a Coreia do Norte e o Iraque. Alguns políticos ucranianos reclamam do fato de que, em 1994, o país entregou as armas nucleares que havia herdado da União Soviética. As garantias de segurança que recebeu em troca de Grã-Bretanha, França, EUA e Rússia hoje soam mais do que vazias.

Mas os grandes países também podem avaliar o peso que os suplementos nucleares acrescentaram ao seu poderio convencional. Thérèse Delpech, famosa estrategista nuclear francesa, afirmou pouco antes de morrer, em 2012, que os adversários do Ocidente já preparavam uma variedade de táticas assimétricas para compensar sua desvantagem militar convencional; seria um equívoco supor que as armas nucleares não tenham um lugar neste arsenal. 

Táticas assimétricas. A Rússia é um deles. Em 1999, Putin ficou impressionado com a eficiência das armas de precisão do Ocidente em Kosovo. Quando Putin se tornou presidente, um ano mais tarde, introduziu a doutrina militar da “desescalada”, na qual a ameaça de um ataque nuclear limitado, provavelmente, mas não necessariamente contra um alvo militar, poderia ser usada para forçar um adversário a retornar à situação anterior. Foi usada para dissuadir os EUA e seus aliados da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) de se envolverem em conflitos em que a Rússia julgava ter interesses vitais.

O segredo da credibilidade da doutrina é o fato de o Ocidente supor que a Rússia poderia querer assumir o risco de usar armas nucleares, pois está muito mais preocupado com os resultados em relação a seus “vizinhos próximos” do que qualquer outro. Desde o ano 2000, em praticamente todos os exercícios militares de grande envergadura realizados pela Rússia foram feitas simulações de ataques nucleares limitados, até mesmo sobre a Polônia em 2009. Depois de um intenso programa de modernização, a Rússia agora confia muito mais em suas forças convencionais. Isso poderá explicar o motivo pelo qual um grande exercício realizado em 2013 não teve nenhuma simulação de ataque nuclear.

Mas o conflito na Ucrânia se assemelha de maneira desconcertante ao que as forças russas costumam travar e planejar em seus jogos de guerra. A vontade da Rússia de apelar para a provocação com armas nucleares pode ser constatada em suas ameaças de lançamento de ataques preventivos contra os sistemas de defesa antimísseis americanos na Romênia, este ano, e na Polônia em 2018. No final de 2013, a Rússia estacionou mísseis com capacidade nuclear em Kaliningrado, o enclave entre a Polônia e a Lituânia.

A ideia de um “combate nuclear - pau a pau com os Russkies”, como o major Kong disse no filme Dr. Strangelove, ou Como aprendi a parar de me preocupar e a amar a bomba, de Stanley Kubrick, parece uma volta à Guerra Fria. Mas na Guerra Fria os dois lados estavam profundamente empenhados na estabilidade internacional, e as armas nucleares eram consideradas uma maneira de preservar, e não desafiar, o status quo.

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Isso não significava que não houvesse riscos - as coisas poderiam facilmente dar errado por acidente ou por algum desígnio, e o interesse mútuo na estabilidade poderia desaparecer. Mas tanto as lideranças americanas quanto as soviéticas mostraram-se absolutamente dispostas a evitar os riscos das armas nucleares. 

Protocolos como o uso da “linha direta” para desarmar e administrar as crises evoluíram, e foi tomado todo o cuidado para prevenir a possibilidade de um lançamento acidental ou não autorizado. A criação de forças nucleares de “retaliação”, o que poderia garantir uma resposta depois do ataque mais elusivo, reforçou a estabilidade.

A nova era nuclear é construída sobre alicerces mais precários. Embora exista um número muito menor de armas nucleares do que no ápice da Guerra Fria, a possibilidade de algumas delas serem usadas é maior e está aumentando. Esta crescente possibilidade alimenta a probabilidade de que outros países optem pelo uso de armas nucleares o que aumenta, por sua vez, a sensação de instabilidade.

Muitos fatores que permitiram que a dissuasão funcionasse na Guerra Fria agora estão enfraquecidos ou ausentes. Um deles é a aceitação geral da estabilidade estratégica. Algumas das potências nucleares dos nossos dias querem desafiar a ordem existente, regional ou global.

Tanto a China quanto a Rússia estão insatisfeitas com o que consideram uma ordem internacional com base em normas criadas para o Ocidente e por este dominada. Há fronteiras em disputa com bombas nucleares de ambos os lados entre a Índia e a China e o Paquistão.

O tipo de protocolos que os EUA e a União Soviética da era da Guerra Fria criaram para se garantir reciprocamente está muito menos em evidência hoje. A China está particularmente cautelosa com o tamanho, o status e as capacidades de suas forças nucleares, e nada transparente a respeito da abordagem da doutrina que poderia determinar seu uso.

Índia e Paquistão têm uma linha direta e costumam se informar reciprocamente a respeito de testes, mas não discutem quaisquer outras medidas para melhorar a segurança nuclear, por exemplo, transferindo as armas nucleares para mais longe de suas fronteiras. Israel nem sequer admite que seu arsenal nuclear existe. Os protocolos que norteavam as relações nucleares entre EUA e Rússia também estão visivelmente desaparecendo; a cooperação na área da segurança dos materiais nucleares terminou em dezembro de 2014.

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Necessidade. A capacidade das armas de retaliação - que, segundo os teóricos, em algumas circunstâncias, fortalecem a dissuasão - está se espalhando, o que poderá representar algum conforto. Uma capacidade garantida de retaliação reduz consideravelmente o dilema desestabilizador “use-as ou perca-as” que um país com uma força nuclear limitada ou vulnerável enfrenta numa crise. 

Rússia, EUA, França e Grã-Bretanha há muito desfrutam desta garantia graças a mísseis submarinos praticamente invulneráveis, quando no mar. Agora a China dispõe de mísseis móveis que poderiam sobreviver a um primeiro ataque, e está montando sua própria frota de submarinos dotados de mísseis balísticos. A Índia inicia os testes de seu primeiro submarino equipado com mísseis balísticos. Israel tem submarinos que podem lançar mísseis de cruzeiro com a possibilidade de transportar ogivas nucleares.

Mas vale lembrar que a perspectiva de uma das duas partes num conflito desenvolver tal capacidade é por si só desestabilizador. Há também a preocupação de que líderes de algumas potências nucleares possam ser menos avessos a riscos do que seus análogos da Guerra Fria. Uma posição de cautela por parte de líderes que acham que seus regimes estão sob ameaça interna ou externa ou cuja religião ou ideologia privilegia o confronto apocalíptico, agora vem se juntar ao temor das armas nucleares na Coreia do Norte e possivelmente no Irã.

Instituições frágeis também aumentam o perigo de um uso não autorizado de armas, ou de algumas acabarem em mãos de grupos não estatais. Este perigo é especialmente agudo no Paquistão, onde a responsabilidade pelas armas de curto alcance é delegada a comandantes de campo durante uma crise e a grande parte do Exército está radicalizada e onde as redes jihadistas se multiplicaram.

Juntando o risco de que a persuasão nuclear possa ser usada para impor mudanças em vez da estabilidade, o número crescente de atores e uma possibilidade cada vez maior de uma confusão quanto ao que realmente está ocorrendo, Thérèse Delpech escreveu em 2012 que o mundo entrava numa nova “era de pirataria estratégica”. Esta nova pirataria se caracterizava pela anarquia e o engano e, na sua opinião, isso incluiria ataques-surpresa ou ameaças flagrantes. 

A China constituía uma preocupação em particular diante da sua recusa em participar de discussões sérias sobre que tipo de estabilidade estratégica seria conveniente. O Ocidente, alertou Delpech, estava mal preparado.

Para alguns estrategistas, diante da ameaça existencial representada pelas armas nucleares, novas formas de dissuasão serão encontradas. Foi o que ocorreu na Guerra Fria e mutatis mutandis pode funcionar hoje.

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Mas como observou o estrategista britânico Lawrence Freedman, “a dissuasão funciona; até o ponto em que não funcionará”.

Num futuro mais complicado e caótico, este “não funcionará” fica mais provável, especialmente se não refletirmos sobre o problema. Os EUA pretendem fazer enormes gastos num novo kit nuclear, mas há poucas evidências de algum esforço intelectual necessário para desenvolver novas teorias de dissuasão.

Uma maneira de reforçar a estabilidade seria por meio de uma doutrina mais declarada de dissuasão por parte dos EUA. Na Ásia e no Oriente Médio, as garantias de segurança oferecidas pelos EUA a seus aliados são mais ambíguas do que na Europa, onde o compromisso da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) é claro. 

A crescente capacidade militar da China e da Coreia do Norte ameaçam o Japão, e menos a Coreia do Sul, aliados americanos que se abstiveram de armas nucleares. Ambos poderiam se dotar delas rapidamente se assim quisessem. Caso o Irã se retire do TNP e prossiga na construção de uma bomba, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e talvez o Egito se verão pressionados a fazer o mesmo.

Os EUA podem ajudar pratica e doutrinariamente. O país tem um número crescente de mísseis antibalísticos eficazes que poderia partilhar com os aliados; tais mísseis poderão ser às vezes desestabilizadores, mas talvez não como a proliferação das armas. Os EUA também estão desenvolvendo os chamados “ataques globais rápidos” - a capacidade de realizar ataques de precisão usando armas convencionais em qualquer parte do mundo dentro de uma hora - o que permitiria neutralizar rapidamente pequenas forças nucleares hostis sem recorrer a armas nucleares.

Tolerância. Nada disso será de grande ajuda contra as maiores e as menores ameaças. Hoje uma potência nuclear emergente como a China poderá ser muito mais tolerante a risco em alguns tipos de crises regionais (digamos no caso de Taiwan) do que no passado. Na outra extremidade do espectro, em se tratando de grupos não estatais sem ativos que seriam colocados em risco, a dissuasão simplesmente não será de muita ajuda.

As recentes esperanças de um Global Zero parecem hoje desesperadamente prematuras. Enquanto as relações entre as grandes potências continuarem instáveis, as rivalidades regionais persistirem sem solução e os chamados Estados renegados continuarem a pensar nas armas nucleares como uma maneira de intimidar adversários pretensamente poderosos, o incentivo para manter armas nucleares pesará mais do que outras considerações. O que é ainda mais verdadeiro diante do fato de que até hoje ninguém demonstrou, de modo convincente, que a renúncia às armas nucleares tornará realmente o mundo mais seguro.

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O economista e estrategista Thomas Schelling argumenta que o mundo da renúncia às armas não tem uma boa resposta para o problema da retomada - ou seja, a capacidade de uma ex-potência nuclear de restaurar seus recursos nucleares muito rapidamente. Nenhum governo pode se permitir perder uma guerra que venceria se retomasse as armas nucleares.

Portanto, há fortes incentivos para enganar, por exemplo, ocultando as armas para uma tal eventualidade. Thomas Schelling conclui que um mundo como este teria uma dezena de países com “planos de mobilização para produzir armas nucleares e mobilizar ou comandar sistemas de lançamentos dessas armas”. “Toda crise será uma crise nuclear”, alerta o economista. “Toda guerra pode se tornar uma guerra nuclear.”

Obama estava certo há seis anos quando advertiu o mundo contra a complacência para com as armas nucleares. O conhecimento que até um certo ponto, seja por casualidade ou de propósito, provavelmente será usado não é razão para não nos empenharmos em adiar esse dia infernal. Seu uso certamente não será nunca considerado moeda de troca nas relações internacionais. Mas, no momento, o máximo que podemos conseguir é buscar maneiras para restaurar um método de dissuasão eficaz, fazer pressão contra a proliferação e voltar às perseverantes e monótonas negociações sobre controle de armas entre as principais potências nucleares. 

© 2015 THE ECONOMIST NEWSPAPER LIMITED. DIREITOS RESERVADOS. TRADUZIDO POR ANNA CAPOVILLA, CELSO PACIORNIK E TEREZINHA MARTINO, PUBLICADO SOB LICENÇA. O TEXTO ORIGINAL EM INGLÊS ESTÁ EM WWW.ECONOMIST.COM

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