A nova face da escravidão

Em 4 perfis, 'Estado' retrata alguns dos tipos mais comuns de servidão aos quais milhões de pessoas ainda estão expostas nos dias atuais

PUBLICIDADE

Por Adriana Carranca e Londres
2 min de leitura

O nepalês Deependra Giri lembra-se do frio, da escuridão e do cheiro de excremento no galpão onde era mantido em cativeiro com outros 600 homens traficados para trabalhar na construção civil no Qatar. Durante dois anos ele foi mantido em condições desumanas e obrigado a trabalhar dia e noite. Viu colegas caírem doentes - um cometeu suicídio -, enquanto ouvia dos "patrões" que só sairia dali morto. 

Dois estudos recentes mostram que as ameaças feitas a Deependra não eram vazias. Mais de 400 imigrantes nepaleses morreram em canteiros de obras no Qatar desde que o país venceu a disputa ara sediar a Copa do Mundo em 2022 e iniciou as obras para o evento. O estudo, do Pravasi Nepali Coordination Committee, organização de direitos humanos respeitada no Nepal, foi feito com números oficiais de Doha. Mas os nepaleses representam apenas 20% da força de trabalho composta por imigrantes no Qatar. Em janeiro, números disponibilizados pela Embaixada da Índia no Qatar apontaram a morte de 500 trabalhadores indianos do mesmo setor desde 2012.

Eles (embaixada do Nepal) não me ajudaram. Eles sabem muito bem o que está acontecendo com os trabalhadores nepaleses no Qatar e não fazem nada

"A comida era horrível, não havia eletricidade nem água potável. No verão, o calor era tão insuportável que nós dormíamos amontoados no telhado do galpão e acordávamos cobertos pelo pó cinza de cimento", disse Deependra ao Estado. Deependra pagou do próprio bolso a passagem até Doha. Ao desembarcar no aeroporto, foi recebido por um homem que lhe tomou o passaporte. Ele só recebeu o documento de volta quando conseguiu escapar sob a proteção de um antropólogo estrangeiro que pesquisava a escravidão moderna nos países do Golfo. 

Os dois se conheceram após Depeendra ganhar a confiança dos patrões. Como ele era professor e conhecia computação, passou a trabalhar no escritório e a receber cerca 1 mil rials, algo como R$ 700, para a própria sobrevivência, dinheiro que procurava guardar para comprar a passagem de volta ao Nepal. Seu passaporte, no entanto, continuou retido. 

Em uma das vezes que teve a autorização do patrão para sair e fazer compras, escapou para a Embaixada do Nepal. "Eles não me ajudaram. Eles sabem muito bem o que está acontecendo com os trabalhadores nepaleses no Qatar e não fazem nada", disse Deependra. Em uma outra oportunidade, ele conheceu o professor Andrew Gardner, que fazia pesquisas para o livro City of Strangers (Cidade de estranhos, em tradução livre), sobre imigrantes nos países do Golfo. Gardner ajudou Deependra a deixar o país. "Eu nem sabia que a isso se dava o nome de escravidão, até conhecer o professor", diz Deependra. "Tive muita sorte. Mas muitos não têm". Depois de voltar ao seu país, Deependra fundou a organização Safety First, que luta contra o tráfico de pessoas e o trabalho forçado no Nepal.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.