A visão dos EUA sobre a atuação do Brasil na crise argentina

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Por Agencia Estado
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O vazamento, em Buenos Aires, do conteúdo de uma conversa que um diplomata argentino teve no Departamento de Estado, na semana passada, trouxe mais uma vez à tona a visão hostil que existe em setores da burocracia americana sobre a atuação do Brasil em assuntos regionais. Segundo o jornal Clarín de sexta-feira, o ministro-conselheiro da representação argentina em Washington, Ricardo Lagorio, ouviu manifestações de preocupação dos diplomatas americanos sobre a reaproximação de seu país com o Brasil em meio à profunda crise que a Argentina atravessa. Vocês vão mimetizar o Brasil? Acham que o Brasil negociará por vocês com o Fundo Monetário Internacional? E quem vai lhes dar o dinheiro para sustentar seu programa econômico, o Brasil? Segundo o jornal, que não fez uso das aspas, estas teriam sido algumas das perguntas ouvidas por Lagorio numa reunião semanal que os diplomatas da Argentina têm no Departamento de Estado desde o governo Menem, quando o país foi premiado com a condição de "aliado especial" dos EUA por sua disposição de concordar em tudo com Washington. Nem Lagorio nem o Departamento de Estado desmentiram diretamente o que foi publicado. Alvo de uma emboscada burocrática armada por um colega que vazou a informação provavelmente para inviabilizar sua permanência em Washington, Lagorio disse à Agência Estado que não conhece e nunca falou com o autor da reportagem e desconversou sobre seu conteúdo. O porta-voz do Departamento de Estado para a América Latina, Wes Carrington, disse que o relato do Clarín reflete "apenas um lado da conversa". Ele acrescentou que "a Argentina e o Brasil farão o que precisarem fazer na esfera de suas relações" e que os Estados Unidos "não têm nenhuma preocupação particular" em relação a isso. A reportagem do jornal bonaerense não causou surpresa entre ex-altos funcionários americanos, especialistas sobre temas regionais em Washington ou diplomatas brasileiros. "Se não um sentimento anti-brasileiro, há em alguns níveis do governo americano uma certa insatisfação com certas posições do Brasil, por exemplo, em relação à ALCA", disse o presidente do Diálogo Interamericano, Peter Hakim, referindo-se à Área de Livre Comércio das Américas - um projeto norte-americano que o Brasil vê com reserva. "O sentimento é de que o Brasil não coopera , tem uma atitude rabugenta, impertinente", afirmou Hakim. "Duvido de que alguém (no Departamento de Estado) tenha dito que a Argentina não deva ter melhores relações com o Brasil, mas consigo ver claramente alguém dizendo numa conversa com os argentinos que os EUA esperam que eles não adotem a atitude do Brasil de suspeitar dos motivos dos EUA". Arturo Valenzuela, professor da Universidade de Georgetown e ex-assessor senior de Segurança Nacional para a América Latina do presidente Bill Clinton afirmou que "há uma reticência em setores do governo americano que vêem o Brasil como um sócio não confiável e um país que tem uma agenda contrária aos interesses fundamentais dos EUA na região, especialmente em temas comerciais e em outros que afetam as nossas relações com a região". Segundo Valenzuela, "esta não é uma visão de consenso" mas ela tende a prevalecer "porque não há liderança clara no Departamento de Estado em relação à América Latina". O problema de liderança foi resolvido na tarde da última sexta-feira com a efetivação de Otto Juan Reich, um cubano-americano pouco familiarizado com o Brasil, no cargo de secretário de Estado adjunto para América Latina. Um ex-ocupante desse cargo, que não compartilha da visão negativa sobre o Brasil e a atribui em parte à escassez no Departamento de Estado de especialistas em assuntos brasileiros, interpretou com ironia a apreensão americana refletida pela reportagem do Clarín. Diante da atitude passiva e de distanciamento que Washington adotou frente ao colapso econômico de seu "aliado especial", o ex-alto funcionário disse que os EUA estão dizendo à Argentina "vá passear, mas não passeie com o Brasil". Segundo diplomatas brasileiros, a atitude azeda em relação ao Brasil existe principalmente nos setores médios da burocracia americana, principalmente no Departamento de Estado e no escritório do Representante de Comércio dos EUA (USTR). "A razão é que nós temos opiniões e posições próprias sobre os assuntos de nosso interesse, fazemos nossas ponderações com base nessas posições, concordamos e discordamos deles e devemos ser vistos como chatos da perspectiva de quem está acostumado a ouvir sempre amém". Um fato significativo, no episódio em questão, é que a conversa de Lagorio no Departamento de Estado aconteceu no mesmo dia em que o New York Times publicou uma reportagem chamando atenção para o fato de que o fim do regime da paridade cambial na Argentina abria o caminho para um fortalecimento do combalido Mercosul. No mesmo dia , o Wall Street Journal afirmou, em editorial, que o Mercosul fora a causa dos problemas da Argentina e recomendou ao país deixar o acordo do Cone Sul e dolarizar sua economia - uma idéia tecnicamente inviável, segundo o FMI, mesmo que fosse aconselhável. Na véspera, o economista Sebastian Edwards, da Universidade de Stanford, havia defendido a mesma posição em entrevista à CNN em Espanhol. Essa antipatia pelo Mercosul é antiga e está incrustada na burocracia americana. Em 1995, a então titular do USTR, Charlene Barshefsky, chamou publicamente a união aduaneira de "uma unidadezinha" de comércio. Nos anos seguintes, setores do governo americano ajudaram a alimentar a tese da dolarização da economia argentina, em parte para manter viva a possibilidade de um racha no Mercosul e de um isolamento do Brasil nas negociações da ALCA. Segundo fontes bem informadas, até um par de semanas atrás, as análises da embaixada dos Estados Unidos em Buenos Aires apostavam na tese segundo a qual a gravíssima crise econômica argentina abriria uma brecha tão grande com o Brasil que inviabilizaria o Mercosul. Leia o especial

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