Análise: Como o populismo se transforma em autoritarismo? O caso da Venezuela em questão

A situação da Venezuela serve de alerta: o populismo é um caminho que, a princípio, pode dar a impressão de ser democrático, mas, seguindo a conclusão lógica, pode levar à derrocada democrática ou até ao autoritarismo puro e simples

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Por Redação
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Quando Hugo Chávez assumiu o poder na Venezuela, há quase 20 anos, o populismo esquerdista que defendia supostamente salvaria a democracia. Em vez disso, causou a implosão do sistema no país, marcado recentemente por um ataque à independência de sua legislatura.

A situação da Venezuela serve de alerta: o populismo é um caminho que, a princípio, pode dar a impressão de ser democrático, mas, seguindo a conclusão lógica, pode levar à derrocada democrática ou até ao autoritarismo puro e simples.

Chávez segura uma cópia da Constituição venezuelana no Palácio de Miraflores em abril de 2002 Foto: Daniel Aguilar/Reuters

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Nem sempre termina assim, é verdade. O colapso venezuelano contou com a ajuda de outros fatores, como os preços do petróleo, que caíram muito; além disso, as instituições democráticas sempre podem pôr em cheque suas tendências mais sombrias.

O país reflete as tensões fundamentais entre populismo e democracia que também estão em jogo mundo afora – e se não forem controladas, podem crescer até que um dos dois sistemas prevaleça. E embora os países possam escolher qual caminho seguir, essa opção raramente é feita conscientemente, com consequências que só se mostram explícitas quando já é tarde demais.

A onda de fúria populista que Chávez elevou ao poder, nas eleições de 1998, foi gerada pela frustração com o estado da democracia no país.

Quando ele assumiu a presidência, o Judiciário estava desestruturado e era corrupto. Um relatório da Human Rights Watch concluiu que o principal tribunal da nação "tinha criado uma tabela, com preços estipulados, para solucionar diferentes tipos de casos".

Menos de um por cento da população tinha confiança na lei. Como resultado, o apoio à primeira rodada de reformas judiciárias, em 1999, foi imenso – e, de acordo com uma pesquisa feita no mesmo ano pelo Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas, aumentou a independência judicial e a integridade.

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Mas quando a Suprema Corte se recusou a permitir que quatro generais que Chávez acreditava terem participado de uma tentativa de golpe contra si fossem processados criminalmente, ele passou a ver o órgão como um obstáculo à vontade popular e cúmplice da elite corrupta que subiu ao poder prometendo combater.

A tensão se intensificou em 2004, quando a Suprema Corte decidiu que a petição para a realização de um referendo que poderia tirar Chávez do poder tinha um número suficiente de assinaturas para seguir adiante.

O presidente então deu a si mesmo a autoridade de suspender juízes hostis e substituí-los por outros, destruindo a capacidade do poder de agir como "supervisor" da presidência.

"Ao longo dos anos seguintes, a nova Suprema Corte demitiria centenas de juízes, nomeando inúmeros outros", concluiu o relatório de 2008 da Human Rights Watch.

De acordo com o que Chávez pregava, isso faria com que a Justiça fosse mais receptiva à vontade e às necessidades do povo – conceito que pode ter encantado os eleitores que o puseram no governo com base em promessas explícitas de acabar de vez com a supremacia da elite corrupta no poder.

O cientista político holandês Cas Mudde escreveu, em 2015, um texto para o Guardian em que dizia que "o populismo é uma resposta democrática iliberal ao liberalismo não democrático".

Em outras palavras: Chávez, como outros líderes populistas, disse a seus correligionários que seus problemas eram causados por uma elite e instituições indiferentes e não democráticas. E alegou que seria necessário um líder forte para acabar com essas forças sombrias e impor a vontade do povo. O conceito provou ser extremamente popular, assim como seus passos iniciais.

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"Porém, isso tem um preço", escreveu Mudde. Esse "extremismo majoritário" reestrutura a democracia não como um processo negociável que pretende incluir e servir a todos, mas sim uma batalha sem ganhadores entre a vontade popular e quem quer que ouse se opor a ela, incluindo juízes, jornalistas, líderes oposicionistas ou mesmo tecnocratas do governo considerados, em alguns países, como o "Estado profundo".

É por isso que Kurt Weyland, cientista político da Universidade do Texas, escreveu, em 2013, em um artigo acadêmico: "O populismo sempre estará em conflito com a democracia".

"Líderes populistas como Chávez, conquistando autoridade a partir da promessa de defesa da vontade popular, veem qualquer instituição além de seu controle como obstáculos a serem ignorados ou superados", Weyland escreveu.

Isso revela a contradição entre a forma como a democracia é vista e como realmente funciona.

"Apesar de toda a retórica, a democracia liberal é um compromisso complexo de democracia popular e elitismo liberal e, portanto, apenas parcialmente democrática", Mudde escreveu em uma publicação acadêmica em 2004.

Isso exige a entrega do poder para instituições não eleitas, necessárias para a preservação da democracia, mas contrárias à imagem da pura vontade popular, desacordo esse que deixa uma brecha para que os populistas as contestem.

Só que quando os líderes populistas lhes tiram a autoridade para "devolvê-la ao povo", como costumam dizer, na prática estão consolidando o poder para si mesmos.

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Para Weyland, "a lógica do personalismo é que leva os políticos populistas a ampliar seus poderes e arbítrio".

É por isso que os populistas geralmente acabam cultivando o culto à personalidade. Chávez, além de apresentar um talk show aos domingos, fazia comícios e aparecia constantemente na TV. Tal prática é tipicamente motivada por algo além do ego; a autoridade desses líderes não vem de um sistema que se baseia em regras que governa as democracias consolidadas, mas sim do apoio popular, puro e simples.

Essa dinâmica funciona enquanto eles podem alegar terem uma relação única com o público, que os permita atacar os "inimigos internos" – como o Judiciário ou a imprensa livre, por exemplo – em seu nome.

As tendências autoritárias do populismo já podiam ser percebidas nas batalhas inicias de Chávez com os sindicatos, que ele assumiu o governo prometendo "democratizar".

Alegava que os líderes de tais instituições eram corruptos e não tinham conseguido proteger os direitos dos trabalhadores.

Assim, seu governo criou um sistema paralelo de novos sindicatos enquanto enfraquecia as instituições já estabelecidas, sobre as quais tinha menos influência, o que acabou criando uma situação em que os que o apoiavam era favorecidos e os discordantes, punidos.

A mensagem contida aí era assustadora: opor-se ao presidente era ir contra seu projeto de "socialismo bolivariano", em prol do povo. Nessa lógica, ser dissidente era uma ameaça à liberdade, e não prova dela.

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Esses episódios mostram como os passos iniciais do populismo – a defesa a instituições não eleitas, "preparando o terreno" para reformas aparentemente necessárias – podem ganhar fôlego próprio, até a lista de inimigos crescer para incluir os pilares da democracia básica.

Atalhos. Em retrospecto, esses passos já apontavam inequivocadamente para o autoritarismo, culminando na tentativa recente de amordaçar a legislatura, ação remanescente de Nicolás Maduro, sucessor de Chávez.

Essa progressão não foi inevitável. Testes drásticos à democracia às vezes conseguem resistir às pressões do populismo e manter os líderes na linha – como o italiano Silvio Berlusconi, por exemplo, que deixou o cargo com um histórico instável e um sem-fim de acusações de corrupção, mas deixando a democracia do país intacta.

Só que isso raramente se mostra óbvio no momento em que o país está seguindo por um determinado caminho, e não só porque os passos iniciais rumo ao autoritarismo quase sempre pareçam ou deem a impressão de ser democráticos.

Para Tom Pepinsky, cientista político da Universidade de Cornell, o autoritarismo é quase sempre uma consequência fortuita de fatores estruturais que enfraquecem as instituições, como um conflito armado ou choque econômico, e de passos graduais tomados por líderes que sinceramente acreditam estar servindo a vontade popular.

"Da mesma forma que as democracias podem ser governadas por autoritários, democratas fiéis também podem criar a base para o autoritarismo", escreveu Pepinsky em seu blog em fevereiro. Decisões que dão a impressão de serem "atalhos" para a democracia – o descarte de juízes ou a demonização da imprensa hostil – podem, em longo prazo, ter um efeito contrário.

A Venezuela mostra o pior resultado de um governo populista, no qual as instituições se mostram tão enfraquecidas e deturpadas que o crime só faz crescer, a corrupção é praticamente universal e a qualidade de vida, inexistente. Pena que tais consequências só se tornem óbvias quando já causaram enormes danos.

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*The New York Times News Service/Syndicate – Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times._NYT_ 

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