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Análise: o outro lado de uma medalha olímpica 

Aproximação entre Pyongyang e Seul é apenas mais um capítulo de uma longa história política dos Jogos

Por Jamil Chade , Correspondente e Genebra
Atualização:

GENEBRA - Numa estátua colocada em Olímpia, uma mensagem deixa claro a dimensão política dos Jogos Olímpicos na Grécia Antiga: ao felicitar Pantarces por uma vitória na corrida de cavalos, as autoridades também o homenagearam por ajudar a estabelecer a paz entre Eleia e outras regiões, incluindo a liberação de prisioneiros de guerra por ambos os lados.

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Séculos depois, quando Pierre de Coubertin recuperou o evento, uma das semelhanças que fora importada da Grécia Antiga foi o caráter político do evento, escancarado uma vez mais com a negociação entre a Coreia do Sul e a Coreia do Norte sobre a participação de dois atletas norte-coreanos nos Jogos de Inverno, em fevereiro. 

Jesse Owens compete em Berlim, em 1936; sua vitória ridicularizou a teoria da superioridade da raça ariana Foto: Getty Images

Mas a manipulação desses eventos por governos também fez parte da história. Em 1936, Adolf Hitler seria um dos primeiros a entender o poder midiático e político da Olimpíada, criando a tradição de levar a tocha pelo país antes dos Jogos. 

Ele não contava, porém, com Jesse Owens, que ridicularizou a teoria da superioridade da raça ariana. O americano colecionou medalhas e até o carinho de um de seus maiores adversários, o alemão Luz Long. Ambos disputaram o ouro no salto em distância em Berlim na emblemática prova vencida por Owens.

Em sua autobiografia, lançada em 1970, o americano lembra que havia queimado todos os seus saltos na fase classificatória. Restava apenas uma oportunidade e, se ele voltasse a pisar na linha, seria desclassificado e sequer competiria na final.

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Mas enquanto caminhava preocupado, o americano sentiu uma mão nos ombros. Quando se virou, apenas ouviu: "Jesse Owens, sou Luz Long. Acho que ainda não nos conhecemos".

Long então, sentindo os problemas com os saltos de Owens, seu maior adversário, lhe deu uma dica: "faça um risco antes da linha oficial e a use como parâmetro". E funcionou. Naquela noite, na Vila Olímpica, Owens conta que foi até o quarto de Long para agradecer e os dois passaram horas conversando. Para a surpresa do americano, ele descobriu que Long não tinha qualquer simpatia pelas teorias de Hitler.

Naquela disputa, Long levou o público e o próprio Hitler ao delírio ao saltar 7,87 metros, algo que ele jamais havia conseguido. Mas Owens foi além e, no sexto salto, atingiu a marca de 8,06 metros.

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Para surpresa geral, o primeiro a correr em direção ao americano foi Long, que o felicitou efusivamente e o abraçou diante de um estádio lotado. Rudolf Hess, um dos líderes da cúpula nazista, alertou à família de Long que jamais voltasse a abraçar um negro, enquanto Hitler não disfarçava sua frustração.

Long morreu na Sicília durante a 2ª Guerra lutando justamente pelo Exército nazista em 1943. A Cruz Vermelha só encontrou o corpo do atleta alemão 5 anos mais tarde.

Quanto a Jesse Owens, ele voltou aos EUA e foi recebido como uma estrela. Mas ele mesmo relata em suas memórias como, dias depois, se deu conta de que continuava sendo obrigado a entrar pela porta de trás dos ônibus de sua cidade. Numa das recepções em sua homenagem num luxuoso hotel americano, o neto de escravos foi orientado a usar o elevador de serviços.

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Visão soviética

A Guerra Fria também se fez presente nos Jogos Olímpicos, muito antes de ganhar esse nome. Após a Revolução Bolchevique de 1917, uma das primeiras medidas adotadas por Moscou foi a de se negar a participar das federações esportivas internacionais, alegando que representavam uma "ideologia burguesa". 

A própria Olimpíada foi alvo de duros ataques. Para o Kremlin, o evento não passava de uma "distração das massas" e uma tentativa de desviar a atenção dos trabalhadores de sua luta de classe.

A participação dos soviéticos em torneios no exterior era limitada e essa realidade mudou apenas quando o Kremlin se convenceu de que seus atletas podiam vencer essas competições. Essa mudança de abordagem tinha como objetivo transmitir a mensagem política de que a classe proletária podia vencer representantes da burguesia.

Numa esperança de criar um sistema político paralelo ao modelo capitalista ocidental, Moscou bancou a criação de novas entidades internacionais que agrupariam associações esportivas com a ideologia comunista. A mais poderosa delas foi a Associação Internacional do Esporte Vermelho que, em sua própria descrição, era a entidade que agrupava "todas as associações esportivas operárias e campesinas que apoiam a luta da classe proletária".

Sua constituição ainda deixava explícito o papel do esporte na vida soviética: "A cultura física, a ginástica, os jogos e o esporte são meios da luta de classes. Não um fim em si mesmo". A declaração simplesmente colocava por terra qualquer tentativa de garantir a neutralidade e caráter apolítico do esporte.

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Para fazer frente aos Jogos Olímpicos, criado por barões e apoiado pela monarquia da Europa Ocidental, os soviéticos estabeleceram em 1928 seu primeiro evento internacional. No lugar do Olimpo, pleno de valores individualistas e a cultura da beleza, Moscou promoveu as Spartakiadas. O nome era uma homenagem ao escravo rebelde que lutou contra seus opressores.

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Cada participação de Moscou em eventos no exterior era cuidadosamente avaliada: apenas se autorizava a viagem quando havia grande possibilidade de vitórias. O editorial do jornal soviético Shakhmatny Listok de 7 de outubro de 1925 explicitava essa ambição política do esporte. 

"A Associação de Xadrez considera possível para as organização de xadrez proletárias tomar parte nos encontros internacionais a fim de que, por meio das vitórias sobre os mestres burgueses, a dignidade das massas proletárias e a fé em sua força e os talentos da juventude sejam realçados."

A realidade é que, a partir dos anos 20 e até a dissolução da União Soviética, o esporte em Moscou esteve à serviço de sua política externa e da promoção de sua ideologia. Todas as missões de esportistas eram consideradas como ações de diplomacia no exterior e cuidadosamente avaliadas em sua conveniência política.

Com a Guerra Fria ganhando força nos anos 50, a rejeição aos Jogos Olímpicos desapareceu diante do cálculo de Moscou de que podia usar o evento para mostrar sua superioridade. Assim, a cada quatro anos, americanos e soviéticos disputavam medalha a medalha a imagem de maior potência do mundo, além de promover e liderar boicotes que quase levaram o evento à falência ao final dos anos 70.

Duelos reais

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Em alguns momentos, esse conflito chegou até as disputas esportivas propriamente ditas, como na semifinal do polo aquático entre Hungria e URSS em 1956, nos Jogos de Melbourne. A partida ficou conhecido como "Sangue na Água".

Um mês antes do início dos Jogos de 1956, um protesto de estudantes em Budapeste colocou em xeque a área de influência soviética, em plena Guerra Fria. Na noite de 22 de outubro, 200 mil pessoas foram às ruas pedir mais liberdade. O primeiro-ministro húngaro, Imre Nagy, foi trazido de volta ao governo com a esperança de conseguir consolidar a revolução.

Imediatamente, o líder político tomou iniciativas estratégicas. Retirou a Hungria do Pacto de Varsóvia e declarou sua intenção de obter a independência completa do país. No dia 30 de outubro, ele decidiu mandar seu time de polo para a Austrália, num gesto de apelo ao mundo por apoio a uma declaração de independência.

Cerca de um mês depois, no dia 20 de novembro, a equipe retornou dos Jogos Olímpicos e descobriu que 3 mil de seus compatriotas morreram em razão da invasão soviética. Dois dias depois, no momento em que os Jogos começavam na Austrália, Nagy seria preso, julgado e enforcado pelos soviéticos. A revolução havia sido suprimida.

Mas o time não desistiu de demonstrar que não se curvaria. Mesmo sem ter entrado em uma piscina por um mês, os húngaros iniciaram a competição vencendo os EUA por 6 a 2, e prosseguiram com goleadas contra Alemanha e Itália.

Classificados para a fase final, descobririam que enfrentariam a União Soviética. Nas arquibancadas, a comunidade húngara que havia migrado para a Austrália anos antes fez questão de criar um clima de guerra naquela semifinal. 

Na piscina, os húngaros provocaram os russos desde o primeiro minuto. E a violência logo ganhou o jogo. O capitão do time de Budapeste, Dezso Gyarmati, foi um dos que agrediu atletas russos.  "Estávamos jogando pelo nosso país", disse Ervin Zádor. Por baixo da água, os pontapés e agressões se multiplicavam.

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Valentin Propokov, um dos melhores jogadores soviéticos, passou a ser alvo constante das provocações de Zádor, que o acusava de ter bombardeado seu país. Até que, ao perder a paciência, Propokov retribuiu as ofensas com um soco.

Diplomacia entre bico, gols e caneladas

O sangue que contaminou a água levou o público à beira de uma invasão, exigindo ação da polícia local para impedir que a partida terminasse em pancadaria entre torcedores e a equipe soviética.

O árbitro decidiu dar um fim à partida mesmo antes da conclusão do tempo regulamentar. Os húngaros venciam por 4 a 0 e o clima de confronto era uma ameaça real.

No dia seguinte, os atletas da Hungria venceram os iugoslavos e conquistaram a medalha de ouro. Mas aquela conquista, ao voltar para seu país, podia significar uma punição, o que fez metade da equipe desistir de retornar para Budapeste. Zádor e outros pediram asilo na Austrália, seguindo anos mais tarde para os EUA.

Tommie Smith e John Carlos levaram ouro e bronze nos 200 m rasos nos Jogos de 1968 na Cidade do México e no pódio, protagonizaram uma cena épica ao erguerem os punhos na saudação dos Panteras Negras Foto: Site oficial do COI

Outro protesto que ganhou notoriedade foi quando os americanos Tommie Smith e John Carlos fizeram a saudação Black Power no pódio em 1968, numa dura crítica contra o racismo nos EUA. Eles foram banidos dos Jogos, mas a imagem do punho erguido entrou para a história. 

Terror em Munique

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Numa das páginas mais obscuras da história olímpica, os atletas de Israel foram alvos de atentado terrorista e, num plano fracassado de resgate, todos morreram. Isso ocorreu em Munique em 1972. Documentos confidenciais guardados pelos arquivos nacionais de Israel revelam que, além da crise que tinham de lidar, um dos debates mais acalorados se referiu à continuação ou não do evento na Alemanha.

Num dos telegramas diplomáticos encontrados nos arquivos, constata-se que o Comitê Olímpico Internacional (COI) e os organizadores alemães decidiram que interromper o evento podia atrapalhar as operações policiais em curso. Mas outro motivo também foi apresentado: a TV alemã havia pago milhões para mostrar a Olimpíada e não tinha um plano B para colocar no ar uma programação alternativa.

Seis horas depois do início da crise, um telegrama enviado pela embaixada de Israel em Bonn, então capital da Alemanha Ocidental, para a cúpula da chancelaria israelense em Tel-Aviv explicava os bastidores de uma reunião mantida entre então presidente do COI, Avery Brundage, e o governo alemão.

"Foi decidido não interromper os Jogos. Os motivos: 1. a possibilidade de que pará-los possa atrapalhar os esforços da polícia (de resgatar os reféns). 2. A televisão alemã não tem alternativas à programação", apontou o documento datado de 5 de setembro de 1972.

Reconciliação

Mas os Jogos Olímpicos também serviram para acelerar processos de reconciliação política. Em 1964, Tóquio recebeu o evento menos de 20 anos depois da 2ª Guerra e foi a oportunidade que encontrou para se apresentar ao mundo de uma maneira diferente e pacífica. O mesmo impacto foi sentido por Barcelona quando, em 1992, apresentou uma nova imagem do país, apagando as décadas de ditadura de Franco. 

Cerimônia de abertura do Jogos Olímpicos de 1992, em Barcelona, na Espanha Foto: Barton Silverman/The New York Times

No COI, muitos insistem até hoje que o boicote contra o regime do apartheid na África do Sul foi um dos fatores que ajudaram a pressionar o governo local a considerar uma revisão de suas regras. 

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Em 2016, pela primeira vez, uma equipe de refugiados participou das Olimpíadas. O COI, a ONU e todos aqueles comprometidos em ajudar as vítimas de um dos maiores desastres humanitários da atualidade afirmaram que o time devia ajudar a criar uma consciência coletiva da necessidade de se encontrar uma solução para a crise que afeta mais de 60 milhões de pessoas em todo o mundo. Quando sírios e africanos entraram para competir, representaram a esperança e desafiaram a retórica de ódio, muros e protecionismo que ganha força pelo mundo.

Dessa forma, dizer que o movimento olímpico e as disputas por medalhas não tem qualquer relação com a política é uma grande mentira que, no mundo do esporte, nem atletas e nem dirigentes acreditam.

Quando Pierre de Coubertin recriou o movimento olímpico no final do século 20, ele estabeleceu um evento que não apenas testava os limites a humanidade: intencionalmente ou não, o francês criou um dos primeiros palcos políticos de dimensões globais. Que, agora, é utilizado pelos coreanos.