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'Aqui tem uma saída: pela chaminé'

Polonês lembra o que ouviu ao chegar ao campo de extermínio ainda criança; hoje, preside a Associação Brasileira dos Sobreviventes do Holocausto no RJ

Foto do author Fernanda Simas
Por Fernanda Simas
Atualização:

“Aqui tem uma saída: pela chaminé”. Essa foi uma das primeiras frases que Aleksander Henrik Laks ouviu quando chegou ao Campo de Extermínio de Auschwitz-Birkenau, na Polônia, em 1944. Ele tinha apenas 15 anos quando foi levado para o local ao lado dos pais.

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Os horrores da 2.ª Guerra começaram cedo para Laks. Em entrevista ao Estado, ele afirma que não sabe como se manteve vivo, mas sobreviveu para poder “alertar” as pessoas sobre os horrores do Holocausto e, assim, evitar que o episódio se repita.

Como o senhor foi levado para Auschwitz?

Nasci na cidade de Lodz, na Polônia, e tinha 11 anos quando a guerra começou. Os judeus foram confinados em um gueto que comportava 25 mil pessoas, mas éramos em 165 mil. Logo, vieram as doenças e o pior de tudo, não tínhamos comida. Uma pessoa normal precisa de 2400 calorias para viver. Os alemães recebiam 2400 calorias, os poloneses não judeus, 1200, e nós, 200 calorias: um quilo de pão para cinco dias e uma sopa, que eles chamavam de sopa, mas era casca de batata e água pura. É provado que com essa dieta uma pessoa pode viver no máximo 12 meses. Eu vivi com essa dieta 5 anos e meio. Como sobrevivi? Eu não sei. Mas eu sei para que. Sobrevivi para alertar, porque isso nunca mais pode acontecer com ninguém.

Ficamos lá até 1944, quando o gueto foi dissolvido. Dos 165 mil que entraram, só restaram 1500, os outros foram exterminados. Eu, junto com meu pai e minha mãe, fui para levado para Auschwitz. O que eu vi lá, pessoas podem viver mil anos e não verão. Arrancaram crianças do colo das mães, jogaram contra a parede, batiam, chutavam, pareciam que estávamos em outro planeta. Meu pai falava alemão e perguntou ‘o que está acontecendo, onde estamos?’ a resposta foi ‘cala a boca, você está em Auschwitz, aqui tem uma saída: pela chaminé. Não pergunta, obedece’.

O que aconteceu quando vocês chegaram lá?

Me mandaram entrar em uma sala. Um antigo prisioneiro veio até mim e disse ‘fala 18, fala 18’. Eu não entendi. De repente, eu estava na frente do oficial e ele praticamente não falava nada. Então, me perguntou ‘você entende alemão?’ e eu disse ‘sim senhor’. ‘Idade?’. Aí me lembrei daquele prisioneiro e disse 18, mas era mentira porque eu estava com 15. Então eles me empurraram para junto do meu pai.

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Eu estava sujo, com piolhos, meu corpo estava dilacerado e minha cabeça, sangrando. Entramos em uma sala, tiramos toda a roupa e eles examinaram. Se você estava sujo ou ensanguentado, não tinha problema, mas se tinha mancha branca ou preta na pele, ia para a câmara de gás. Depois, em outra sala, eles cortaram nosso cabelo, arrancaram um pedaço do couro cabeludo, tiraram a sobrancelha, doía demais. Depois, fomos para outra sala, pensamos que viria o gás, mas veio água. Aí tomamos um bom banho, a água era muito gelada. Depois eu comi e bebi.

Em seguida, passaram um produto contra piolho, mas parecia que tinham jogado álcool e queimado porque ardia demais. Depois nos deram uma calça, um paletó, um cap e tamancos velhos com sola de madeira. Entramos em outra sala e vi meu pai. Quando chegamos perto um do outro, eu quase não o reconheci. Imagina como eu era e meu pai me viu? Foi a primeira vez na vida que vi meu pai chorar.

A gente apanhava. Eram 25 tapas no bumbum e quem fazia isso eram os “capos”, assassinos, ladrões. E nossas vidas pertenciam a eles.

O senhor tem alguma memória mais marcante daquele período?

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Tudo é marcante. Quando chegamos a Auschwitz, minha mãe foi levada para a câmara de gás e cremada. No final, mataram meu pai. Arrancaram-me dois dentes, quebraram meu nariz e hoje eu uso um aparelho para poder dormir. Tudo me marcou, minha mente sempre lembra o que passou. Agora mesmo, eu estava comendo frutas e pensei que essas calorias eu não comia durante meses naquele local, isso fica sempre na minha mente e cada dia que passa, dói mais. Dizem que o tempo cura tudo. Mas do Holocausto, não cura.

Você se lembra do dia que saiu de Auschwitz?

Nós estávamos na Marcha da Morte (alemães levaram os judeus para campos que não estivessem na rota do Exército Vermelho). Andávamos juntos na neve, dormíamos ao relento e chegamos a outro campo de extermínio. Lá, meu pai foi assassinado em uma latrina, onde a gente entrava para ficar um pouco mesmo que não fosse para usar como banheiro, mas para se abrigar do frio. Esse foi o fim do meu pai, aos 45 anos. Ele era uma pessoa boa, muito respeitado antes da guerra, respeitador, nunca fez mal a ninguém e não podia viver porque era judeu.

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Sou um dos poucos que conseguiram reconstruir a vida. Fui para um campo de refugiados na Alemanha, fiquei lá dois anos e depois fui para os EUA. Estava bem lá, mas me lembrei do meu pai ter dito ainda em Auschwitz que tinha uma irmã no Rio de Janeiro. Escrevi uma carta e, por acaso, essa carta chegou até minha tia. Era o único sobrevivente de uma família de 60 pessoas e eles queriam me ver. Mandaram-me passagem, vim ao Brasil e não voltei mais. Hoje sou casado, tenho dois filhos, três netos e tenho muito orgulho de viver aqui.

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