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Argentina exalta papa ‘importador de santa’

Em 1997, Bergoglio mandou trazer imagem do Paraguai para conter gangues, que respeitavam mais a Virgem de Caacupé do que a qualquer policial

Por Rodrigo Cavalheiro e CORRESPONDENTE/BUENOS AIRES
Atualização:

BUENOS AIRES - Ao ver pela TV nos últimos dias elogios ao papa Francisco por reaproximar Cuba e EUA, moradores da maior favela de Buenos Aires lembraram o que garantem ser, esta sim, a grande façanha diplomática de Jorge Bergoglio. Em 1997, ao mandar importar a imagem de uma santa paraguaia, ele controlou as execuções por gangues de imigrantes que respeitavam a Virgem de Caacupé mais que a qualquer policial ou inimigo.

A Villa 21 recebia então milhares de paraguaios que encontraram no bairro de Barracas, vizinho à turística Boca, um lugar tão insalubre quanto barato. Ergueram casebres que tornaram o lugar um labirinto hostil a quem não vivia ali, exceção feita a Bergoglio e aos padres “villeros” que o seguiam. 

Igreja na Villa 21 ganhou nome da santa paraguaia Foto: Rodrigo Cavalheiro/ESTADAO

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Entre os grupos que disputavam território e tráfico, a desculpa para matar podia ser um gol mal anulado ou um namoro mal acabado. “No bairro, 75% são paraguaios ou descendentes. Havia muita rivalidade entre setores”, afirma Lorenzo de Vedia, o Padre Toto, um dos “villeros” a quem Francisco liga de vez em quando “para saber se está tudo bem” no bairro de 50 mil habitantes distribuídos em uma área de 60 campos de futebol.

Com a mediação de Bergoglio, a paróquia hoje comandada por Toto conseguiu dinheiro e autorizações eclesiásticas para que uma comitiva trouxesse a réplica do Paraguai. “Ele foi fundamental porque até então a hierarquia da Igreja não apoiava os padres ‘villeros’”, diz Toto. 

Biógrafos, religiosos subordinados em seus tempos de arcebispo e ex-funcionários citam o caso como um exemplo de sua preferência pelo papel de ponte, sejam os extremos ideologias, classes sociais ou gangues. Federico Walls, assessor direto do arcebispo Bergoglio por seis anos, o descreve como um obstinado por resolver problemas com objetividade. 

Walls derruba o estereótipo do argentino de sorriso permanente, tomador de mate, afeito a tarefas domésticas e a jogar conversa fora. “Sempre foi extremamente pragmático, como mostram as diretrizes com que toma cada decisão.” Os princípios que usa para escolhas são: o todo sobre a parte, a realidade sobre a ideia, a unidade sobre o conflito e o tempo sobre o espaço. 

A chegada de Bergoglio ao Vaticano reaproximou os fiéis e atraiu até alguns turistas interessados em ver a igrejinha diante da qual ele rezava algumas missas de rua em Barracas. “Minha irmã fez comunhão com ele. Muita gente que estava afastada do catolicismo voltou”, afirma a cozinheira Laura Acasco, enquanto prepara sopa para 42 famílias num refeitório comunitário. “Há 10 anos, qualquer estranho que aparecesse era roubado”, acrescenta Amir Suárez, paraguaio de 20 anos que chegou à Argentina aos 9 com os pais e trabalha há 2 em uma usina de reciclagem. 

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Enquanto explica ter largado a escola para ser pai, Suárez recebe papelão e sucata pesada depositados na balança pelo catador José. Com os 20 pesos (R$ 8,45) ganhos, ele compra duas pedras de paco, droga similar ao crack. “Cheguei a ficar quatro anos limpo, mas a droga foi mais forte. Estou há 82 horas acordado”, diz o catador de 28 anos. 

Barracas ainda tem esgoto exposto, carros desmanchados e um trem passa rente às casas, sem as cancelas que bloqueiam carros e pedestres em partes mais ricas da cidade. Hector Clavijo, de 69 anos, um dos líderes comunitários, chegou à favela após a crise de institucional e econômica de 2001. Preso por dois meses durante a ditadura, elogia Francisco por assumir-se como político. “O papa superou uma atitude hipócrita da Igreja, que insistia em dizer que só tinha interesses espirituais e teológicos, quando na verdade sempre foi um fator de poder político fundamental na Argentina. Teve alguns aspectos positivos e muitos negativos”, afirma o ex-metalúrgico e marinheiro, que ganha 700 pesos (R$ 296) por mês de aposentadoria. 

Miguel Leiva, de 40 anos, integrava uma gangue que o pedaço de madeira talhado de 90 cm ajudou a debelar. “Aprendi a atirar aos 10 anos. Roubávamos dentro e fora da favela para comprar droga”, lembra. Matute, como é conhecido, perdeu o irmão gêmeo num tiroteio. Após ser baleado no abdome, buscou a proteção na igreja do padre Toto, que, após a jogada de Francisco, passou a se chamar Nossa Senhora de Caacupé.

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