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A terceira morte do comandante

Líder da revolução que inspirou milhões caiu na realidade de uma tirania que continua sob o comando do irmão, Raúl

Por Gilles Lapouge
Atualização:

A história é uma formidável fábrica de imagens. E as de Fidel Castro nos acompanham desde que o líder do minúsculo Estado recolhido em seu mar tropical, depois de ter fascinado ou horrorizado duas grandes potências (URSS e EUA) assistiu à passagem de 11 presidentes americanos, escapou de 650 tentativas de assassinato e assombrou todos os homens até as extremidades do globo.

Folhear minha memória para esquadrinhar essa figura morta é ver nascer, se desenvolver e morrer, sob os olhos petrificados dos homens, uma das maiores aventuras destes trágicos tempos. E é constatar em primeiro lugar que Fidel, como todos os heróis, teve essa genialidade de transformar sua própria vida em lenda.

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O colosso primeiramente, o homem “sem medo e inatacável” que surge em cena de repente, afastando a cortina, o herói que desafia Fulgencio Batista e a América, que humilha Kennedy na Baía dos Porcos e segue na direção do seu triunfo entre flores, mulheres, cantos e multidões. Depois, como toda lenda, em todos os contos de fadas, vem “o retorno avassalador da realidade”, o fim do que Malraux chamou no início da Guerra Civil Espanhola, em 1936, de “ilusão lírica”.

Começa então a degradação das imagens. Uma delas, profética: há dez anos, o colosso tombou, literalmente, saindo de uma cerimônia. Fidel tropeça e cai como um Sansão sofrendo de gota. E depois vieram outras imagens, no caminho da morte: o guerreiro e o tribuno em seu uniforme de batalha cáqui, a barba soberana, se transforma no idoso que troca sua armadura por um agasalho Adidas de ginástica. Essas imagens já anunciavam a “primeira morte” de Fidel Castro: o mito caído no riacho, o invulnerável se isolando em si mesmo.

Em 17 de dezembro de 2014, vimos a “segunda morte” de Fidel Castro, o dia em que seu sucessor, seu irmão Raúl, e Barack Obama decidem reaproximar seus dois países. Por quê? Porque a época castrista não foi senão um duelo mortal com os EUA.

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A Revolução de 1959 não era comunista. Era antiamericana, a começar pelo combate a Batista, que havia feito da ilha o bordel dos EUA, seu quintal infestado e santuário de mafiosos. E mais tarde, se Fidel lança Cuba nos braços da URSS é após Washington decretar o embargo contra a ilha, um embargo estúpido que, depois de 50 anos, jamais conseguiu fazer curvar “o homem de ferro”. Mesmo as aventuras na África, ou a lamentável epopeia de “Che” na Bolívia, não tinham outro sentido senão o ódio à América.

Esse ódio jamais cessou. Até na decadência da sua velhice, Fidel não o esqueceu. Em março, quando da primeira visita de um presidente americano a Cuba desde 1928, ele destilou seu fel. Falando das tentativas de assassinato preparadas pelos cubanos no exílio com a cumplicidade de americanos, ele afirmou: “ri diante dos planos maquiavélicos de presidentes americanos para me matar”, frase ainda mais interessante quando sabemos que um dos planos contra ele consistia em devastar com pó químico a barba imponente de Fidel, para que se tornasse ridícula e assim diminuísse sua popularidade.

Futuro. A questão hoje é: Raúl é mais flexível que seu irmão? Como é menos extrovertido, não sabemos muita coisa. O professor Jacobo Machover, da Universidade de Paris, adverte que “estamos diante de uma dinastia tirânica. É um clã familiar que controla a ilha. A aposentadoria de Fidel em 2006 nada mudou”. Simplesmente, a tirania tem uma nova cara. Os dois irmãos continuam a destruir o país. E se hoje há menos jornalistas presos, a intimidação continua.

Quando a ilha foi atingida pelo furacão Matthew, em outubro, um jornalista foi preso porque divulgou informações sobre os estragos. O editor do Hablemos Press foi atropelado por um carro. Opositores do regime são presos preventivamente. São detidos antes mesmo de qualquer ação. Cuba está no 17.º lugar do ranking mundial de liberdade de imprensa.

O desaparecimento de Fidel, o grande irmão, o herói, o “superego” de Raúl, como diriam os psicanalistas, vai liberar Raúl e permitir que ele continue a trabalhar no sentido de um reencontro com os EUA? Muitas pessoas duvidam. Para elas, Raúl é uma espécie de Fidel atrofiado, sem classe e sem inspiração, mas também implacável. Ao grande blasfemador, ao visionário, sucedeu um pequeno contador, um burocrata da subordinação. Não é com um tipo como ele que nos arriscamos a uma embolia de poesia ou de lirismo revolucionário.

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Mesmo imaginando que Raúl pretenda seguir o caminho aberto com Obama, há outro obstáculo. Donald Trump, que assume o governo em 20 de janeiro, continuará o trabalho de pacificação? Obama desconfia. Se visitou a ilha, seu objetivo foi tornar irreversível a “distensão” esboçada após meio século de embargo. E adotou uma medida de precaução: nomeou em setembro um embaixador esclarecido para Cuba, Jeffrey DeLaurentis.

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Mas Trump, quando fez campanha na Flórida soltou essa frase inquietante: “a normalização dos EUA com Cuba foi conduzida por Ordens Executivas, decretos presidenciais. O que Obama fez, Trump pode desfazer”. Mas começamos a conhecer Trump. Suas verdades mudam. Ele tem renegado de bom grado o que anunciou durante a campanha. É capaz de dar reviravoltas de 180 graus.

No momento, chegamos ao fim do capítulo aberto em 1959. A epopeia de Fidel lançou seus últimos fogos. O romantismo revolucionário, durante alguns anos, fez maravilhas. Fascinou e galvanizou intelectuais, políticos, artistas, multidões, o mundo inteiro. Depois disso, o planeta sepultou seus sonhos nas burocracias da morte da injustiça. Desapareceram as primaveras árabes no sangue das crianças de Damasco e Alepo. Assim, naufragaram as profecias milenares de Hitler ou as miragens das revoluções proletárias. Assim desapareceram na base encharcada de sangue das guilhotinas de Robespierre, as esperanças de 14 julho de 1789. E também em Cuba a anunciação da Baía dos Porcos sofreu uma degradação. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

* É CORRESPONDENTE EM PARIS

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