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As ‘mulheres de conforto’

São terríveis, de chorar, as fotos das coreanas que um dia foram “mulheres de conforto” para soldados japoneses. Isso ocorreu durante 2.ª Guerra, quando a Coreia era uma colônia nipônica. Houve 200 mil dessas coreanas reduzidas ao papel de prostitutas para servir aos soldados. Hoje, restam 46 sobreviventes.

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Por Gilles Lapouge
Atualização:

São senhoras muito velhas, embrulhadas em seus capotes, de bocas desdentadas, rostos devastados por rugas e inchaços, olhar incerto. Suas mãos tremem.

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Como não pensar, vendo essas imagens, nas moças vivas e frescas emboscadas na adolescência por um solavanco da História para terem seus corpos, destinos e sonhos transformados em brinquedo de homens de guerra?

O martírio dessas mulheres era, havia 70 anos, um espinho venenoso nas relações entre o Japão e a Coreia do Sul. No entanto, os dois países atualmente são aliados dos Estados Unidos, são democracias, têm economias prósperas. Mas todos os esforços para cauterizar a ferida até aqui haviam sido inócuos. Um tratado de normalização entre Seul e Tóquio foi assinado em 1965, mas não tratou das “mulheres de conforto”.

Ironicamente, para que o imbróglio fosse desatado foi preciso que chegasse ao poder um homem próximo à casta guerreira, o premiê japonês Shinzo Abe, catalogado como “negacionista” por minimizar sempre a violência do Japão em seu período militarista.

Shinzo Abe finalmente assinou o acordo que se buscava em vão desde 1965. O acerto compreende duas coisas: as desafortunadas 46 “prostitutas” ainda vivas receberão dinheiro e, paralelamente, o Japão reconhece pela primeira vez sua responsabilidade. Abe, o negacionista, chegou mesmo a manifestar arrependimento e pedir desculpas às vítimas.

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O acordo foi preparado em novembro num encontro tête-à-tête entre Shinzo Abe e a presidente sul-coreana, Park Geun-hye. Foi uma conversa penosa. Como ocorre com frequência em grandes momentos históricos, estavam em jogo fatores subjetivos e particularmente sensíveis.

Park Geun-hye é filha do antigo presidente general Park Chung-hee, que foi coronel no Exército japonês – nos tempos da Coreia colônia – e, mais tarde, na Coreia do Sul, autor de um golpe que o levou à presidência, em 1961. Homem duro e autoritário, foi assassinado em 1979.

Isso, do lado sul-coreano. Do lado japonês, o quadro era igualmente estranho: Shinzo Abe é, por parte de mãe, neto de Nobusuke Kishi, ministro do general Hideki Tojo, o impetuoso comandante que fez a guerra do Pacífico contra os Estados Unidos e foi preso depois de 1945 por crimes de guerra – sendo depois libertado pelos próprios americanos com a incumbência de reconstituir a direita japonesa para fazer frente ao avanço dos comunistas na Ásia.

Detalhe que torna ainda mais pesado o encontro de novembro: o pai de Park Geun-hye, o general Park, foi quem assinou em 1965 o tratado de normalização entre a Coreia e o Japão. Nesse acordo ficou entendido que a Coreia do Sul renunciava a reparações de guerra em troca de uma ajuda econômica e nenhuma menção era feita ao drama das coreanas prostituídas, o que provocou explosões de cólera em Seul.

Vê-se que nem a coreana Park nem o japonês Abe tinham o perfil para conseguir o que todos seus predecessores se esquivaram de fazer: reparar a barbárie cometida contra as mulheres coreanas pelas Forças Armadas japonesas. No entanto, chegaram lá. A necessidade política tomou lugar dos sentimentos, dos rancores negacionistas, da enorme “repressão” (como dizem os psicanalistas) subentendidos nas relações entre a Coreia do Sul e o Japão.

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Não será surpresa, nessas condições, saber que os Estados Unidos não estiveram ausentes, ainda que invisíveis, ao longo de todo o processo. A Casa Branca é grande aliada das duas potências asiáticas. E tinha grande interesse em que essa antiga vilania japonesa não enfraquecesse sua estratégia de “contenção” da China naquela parte da Ásia.

Tais são os fantasmas, os não ditos, as chagas secretas e purulentas que se percebe por trás das fotografias daquelas velhas senhorinhas prostituídas em nome da razão de Estado – e cuja desgraça infinita não se fez ouvir em meio à imensa cacofonia da 2ª Guerra. / TRADUÇÃO DE ROBERTO MUNIZ

GILLES LAPOUGE É CORRESPONDENTE EM PARIS