Barreira húngara em rota para Europa faz milhares viverem no lixo na Sérvia

Isolamento de 3,5 metros de altura erguido por húngaros nos 175 quilômetros da fronteira sérvia bloqueia fluxo de refugiados da Ásia e do Oriente Médio, levando 8 mil imigrantes a enfrentar temperaturas negativas

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Por Jamil Chade
6 min de leitura

BELGRADO - Jamshid Shadab diz ter sido traído duas vezes na vida. A primeira, quando foi abandonado pelos soldados americanos no Afeganistão, depois de trabalhar com eles por sete anos como tradutor e em razão disso ser considerado inimigo pelo Taleban. A segunda foi descobrir que, mesmo correndo risco de vida, não seria aceito na Europa. Uma cerca tinha sido erguida em uma das principais passagens para refugiados. Ele havia percorrido 7,5 mil quilômetros.

O afegão saiu de Cabul, atravessou o Irã, a Turquia e chegou à Bulgária. Dali, depois de ser preso, conseguiu cruzar a fronteira para a Sérvia, na esperança de entrar na União Europeia a partir da Hungria. Mas, desde 2016, milhares de estrangeiros estão bloqueados às portas da UE. O governo de Budapeste ordenou o fechamento das fronteiras, construiu um “muro” de mais de 175 quilômetros na fronteira com a Sérvia – são 520 quilômetros se contada a separação da Croácia. Só se permite a entrada de cinco pessoas a dez pessoas por dia. Como resultado, milhares de refugiados e imigrantes que usariam o caminho e as estradas húngaras para chegar a Alemanha, Suécia ou França foram colocados num limbo. 

Com sonho de chegar a Paris, Shadab espera em Belgrado Foto: Jamil Chade, Estadão

A partir deste domingo, 12, o Estado vai contar o cotidiano dos que ficaram do outro lado da barreira, as consequências políticas, sociais e pessoais de um bloqueio considerado uma afronta por ativistas, mas justificado pelos governos como necessidade de proteção contra terroristas. Cerca de 8 mil imigrantes estão parados na Sérvia. “Não podemos voltar para nossas casas, não podemos avançar e não nos querem aqui”, disse Shadab, que sonha em terminar a viagem em Paris. Seu purgatório é onde vive: armazéns e barracos abandonados em Belgrado, amontoado ao lado de outros estrangeiros e de muito lixo. Convive diariamente com ratos, fumaça tóxica, doenças e uma tensão que já levou mais de uma pessoa a perder a razão. 

Ironicamente, numa das paredes dos armazéns um dos refugiados deu um nome ao local: “Foyer Europa”, ou “Residência Europa”. A situação contrasta com a realidade social europeia. Dados da Comissão Europeia indicam que apenas 2,5% dos europeus têm problemas com saneamento e, em países como Alemanha e Holanda, os casos chegam a zero. Pelo menos 87% dos europeus vivem protegidos do frio em suas casas, enquanto 85% não são afetados diretamente pela poluição. 

Na “Residência Europa”, a realidade é bem distante. Não há aquecimento e, em temperaturas negativas (a previsão é de -3°C a 3°C para Belgrado neste domingo), a ação de voluntários sérvios garante a vida dos que estão nos barracões. Uma vez por semana, um grupo de estudantes entrega madeira para os estrangeiros. Cada um recebe a mesma quantidade e, rapidamente, a estoca em armários abandonados. 

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“Cada um guarda essa madeira como tesouro”, conta Shadab. É ela que garante o calor mínimo para sobreviver e a possibilidade de cozinhar. Mas, com mais de mil pessoas dentro das barracas, o impacto é uma fumaça permanente. “À noite, só se escuta tosse aqui”, contou. 

A higiene pessoal também é um desafio. Existe apenas uma bica de água, abastecida pelo Rio Danúbio, a poucos metros dali. A fila para encher garrafas é constante. Com pedaços de potes retirados do lixo, cada um cria seu banheiro, transformando partes de um vidro quebrado em espelho e aquela água não potável em ducha fria. O afegão insiste que fazer a barba é parte do esforço para “continuar parecendo humano”. 

Cobertores sujos são usados como tapumes para que cada um vá ao “banheiro” usando buracos nas imediações. Com o decorrer dos meses, esses buracos lotaram.

A cama de Shadab é uma antiga balança, usada no armazém já desativado durante o período em que Belgrado era a capital da Iugoslávia. “Nunca durmo sozinho”, brinca o afegão. “Sempre tem uma pulga comigo.” 

O frio fica ainda mais insuportável com as dezenas de buracos no teto. A porta sem trinco também é alvo de preocupação. Não são raras as brigas à noite, quando alguns dos imigrantes retornam a suas “residências” indignados. Ninguém se atreve a fechar o local, temendo ser queimado vivo nos frequentes casos de cobertores que se incendeiam. 

Mais de 1,2 mil pessoas aguardam nesses barracões, segundo estimativas da organização Médicos Sem Fronteiras (MSF). A mesma organização colocou à disposição chuveiros, uma clínica e mesmo máquinas de lavar roupa em outro local da cidade, para atender aos estrangeiros. Mas ela sabe que o que oferece não é uma solução, nem é suficiente para atender a todos. 

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Enquanto uma resposta política na Europa não é encontrada, os sinais de resistência estão espalhados pelos muros, com frases, alertas e apelos desesperados. “Por favor, nos ajudem”, diz uma delas. “Abram as fronteiras”, pode-se ler em outro muro. Em meio ao lixo, lê-se na porta de outra barraca: “Eu só quero voltar para casa.” Para muitos, esse é um sonho impossível. “Ninguém deixa sua casa, salvo se sua casa é a boca do tubarão”, diz outra mensagem. 

Barreira entre Hungria e Sérvia 

Ao Estado, o governo sérvio informou que abriu acampamentos com todos os serviços sanitários para esses refugiados. Quando a “rota dos Balcãs” foi fechada oficialmente, em março de 2016, existiam 2 mil refugiados e imigrantes na Sérvia. Menos de um ano depois, o numero quadruplicou. O país, que tinha 5 centros de atendimento, teve de abrir outros 12. 

Shadab explica sua recusa de ir aos centros oficiais: “Temos medo de ser deportados.” Existe ainda outra explicação para ficar no lixão. Aqueles que estão nas barracas esperam um sinal verde de seus “coiotes” para entrar de forma irregular na Hungria e tal “fuga” é mais fácil fora dos locais oficiais. 

Risco. O afegão diz que o caos na fronteira da UE não o deterá. Alega que não teve a oportunidade de explicar a uma autoridade europeia sua situação, depois que deixou sua família em Cabul. “Fui tradutor para os militares americanos por sete anos em meu país”, contou. “Mas quando Obama reduziu as tropas americanas no Afeganistão, muitos saíram e me deixaram lá. O Taleban prometeu matar todos os que colaboraram com os EUA e eu apelei para que fosse resgatado. Mas me traíram.”

Rota. No trajeto entre Cabul e a Europa, Shadab conta que a parte mais dramática foi percorrer o Irã no porta-malas de um carro com outras quatro pessoas. “Por sete horas não podíamos nos mover ou falar”, disse. 

Ao chegar à Bulgária, foi levado pelos coiotes para cruzar o país por uma floresta. Ele e seus colegas foram pegos. Ficaram três meses em uma prisão. Shadab diz que conseguiu escapar com auxílio de contrabandistas. Uma vez mais, foi impedido de entrar na Europa, desta vez, na Sérvia.

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Rota para chegar até a Europa Foto: Estadão

Shadab levou à noite a reportagem até uma praça próxima aos barracões. Ali, outros quatro afegãos preparavam-se para acompanhar um contrabandista que prometia levá-los até a Hungria. Enrolados em cobertores, não sabiam se chegariam, nem se conseguiriam voltar. O ex-tradutor do Exército americano despediu-se dos amigos e desejou sorte. Era a quarta vez que o grupo tentava cruzar a fronteira. Ao perceber que Shadab estava acompanhado de um jornalista, um deles fez um apelo, visivelmente inconformado. Diga ao mundo que somos pessoas também”, apontando para uma das mensagens na parede da “Residência Europa”.

Shadab conta que, depois de pagar US$ 5 mil para fazer o trajeto entre Cabul e Belgrado, não será agora que ele vai desistir. Mesmo depois de três meses na “Residência Europa”, ele guarda dentro de seu sapato o restante do dinheiro que tem para pagar os US$ 2,5 mil que os contrabandistas exigem para ajudá-lo a entrar na Europa. “Nem eu nem ninguém aqui vamos desistir”, disse. “O que ninguém parece entender é que não temos mais para onde voltar.” 

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