Brexit foi atordoante

O centro político tem de encontrar caminho para prevalecer e evitar o triunfo das vozes populistas imprudentes

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Por Tony Blair
Atualização:

A decisão dos britânicos de votar pela saída da União Europeia manifestada no referendo de quinta-feira terá enormes consequências para o Reino Unido, para a Europa e para o restante do mundo. Por um dia, o povo britânico governou: por 52% a 48%, optou por sair da UE.

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Fui um primeiro-ministro que acreditou plenamente que o futuro britânico estava na Europa. Fui o primeiro-ministro responsável pela concessão de substancial autonomia à Escócia para que continuasse parte do Reino Unido. Negociei o Acordo da Sexta-feira Santa que possibilitou à Irlanda do Norte viver em paz dentro da Grã-Bretanha.

Já que o resultado do referendo põe muito disso em perigo, o dia seguinte foi para mim de grande tristeza pessoal e política.

Bandeira da União Europeia, que em breve perderá um membro Foto: REUTERS/Jon Nazca

O impacto mais imediato do voto pelo Brexit é econômico. As primeiras consequências foram rápidas e inevitáveis. Na sexta-feira, a libra atingiu a cotação mais baixa em relação ao dólar dos últimos 30 anos e um dos principais índices do mercado acionário caiu mais de 8%. O índice de crédito do país ficou sob ameaça.

Os efeitos mais duradouros, no entanto, poderão ser os políticos – e com implicações globais. Se as reverberações econômicas continuarem, a experiência britânica será evocada como alerta mas, se houver acomodação econômica, movimentos populistas de outros países ganharão força.

Como isso foi acontecer? A direita britânica encontrou um tema que está causando palpitações na política mundial: imigração. Uma parte do Partido Conservador, aliada ao Partido pela Independência do Reino Unido (Ukip), de extrema direita, agarrou-se a esse tema e centrou nele sua campanha para a saída. A estratégia, no entanto, não teria dado certo sem o apoio de uma significativa parcela do eleitorado trabalhista.

Imigração. Esses eleitores não receberam uma mensagem firme de seu Partido Trabalhista, cujo líder, Jeremy Corbyn, não foi enfático sobre permanecer na UE. Eles se sentiram, então, atraídos pela promessa do Brexit de que poria fim aos problemas de imigração. Além disso, preocupada com o achatamento salarial e cortes nos gastos públicos, essa faixa trabalhista viu o referendo como oportunidade de protestar contra o governo.

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As tensões na Grã-Bretanha que levaram a esse resultado do referendo são um fenômeno universal, ou, pelo menos, ocidental. Movimentos insurgentes de esquerda e direita, apresentando-se como porta-vozes de uma revolta popular contra o establishment político, podem se alastrar e crescer rapidamente. A cobertura jornalística, hoje polarizada e fragmentada, apenas encoraja tal insurgência – efeito multiplicado várias vezes pela revolução das redes sociais.

Já estava claro, antes do voto Brexit, que movimentos populistas modernos podem assumir o controle de partidos. O que não estava claro era se poderiam dominar um país como o Reino Unido. Agora, sabemos que podem.

O centro político é demonizado como elite inacessível, ao passo que os líderes da insurgência são considerados gente como a gente – o que, no caso da campanha pelo Brexit, é risível. Os ativistas do Brexit transformaram o termo “especialista” virtualmente numa expressão de abuso. Quando especialistas alertavam sobre os danos econômicos que se seguiriam ao Brexit, eram tachados de alarmistas. 

Imigrantes eram descritos como bandos de parasitas que vinham para tomar empregos dos britânicos e usufruir dos benefícios sociais do país – quando, na verdade, os que vieram recentemente da Europa Oriental despenderam muito mais em impostos do que usufruíram em bem-estar social. E, além disso, a migração da União Europeia para o Reino Unido não será afetada pelo resultado do referendo.

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O centro político perdeu seu poder de persuadir, além das conexões essenciais com as pessoas que procura representar. O que se vê hoje é uma convergência entre extrema esquerda e extrema direita. A direita ataca imigrantes, enquanto a esquerda investe contra banqueiros. Mas o espírito de insurgência, a raiva ventilada contra os que estão no poder e a insistência em respostas fáceis e demagógicas para problemas complexos são os mesmos nos dois extremos.

Futuro. Reino Unido e Europa se veem frente a um longo período de incerteza política e econômica, com o governo britânico tentando encontrar um futuro fora do mercado comum no qual metade dos bens e serviços britânicos são negociados. 

Os novos arranjos – para que fique claro o tamanho do desafio – têm de ser acertados com todos ou outros 27 países, seus Parlamentos e o Parlamento Europeu. Alguns governos poderão ser cooperativos. Outros, buscando desencorajar movimentos separatistas similares, nada farão para tornar fácil a saída britânica.

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O Reino Unido é forte, com um povo resistente e energia e criatividade em abundância. Não duvido da capacidade dos britânicos de superar seus problemas, seja qual for o custo. Mas o estresse já é visível.

Eleitores escoceses optaram, com ampla margem, por permanecer na Europa, o que leva a novas propostas de outro referendo sobre a independência da Escócia. A Irlanda do Norte tem se beneficiado com fronteiras virtualmente abertas com a República da Irlanda. Essa liberdade corre riscos, pois a fronteira do norte com o sul agora se torna fronteira com a União Europeia, uma ameaça potencial ao processo de paz na Irlanda do Norte.

Se as pessoas – geralmente guiadas por bom senso e praticidade – fazem algo que não pareça nem sensato nem prático, isso leva a um período de prolongadas e difíceis reflexões. Minha própria política está despertando para esse novo panorama. Os mesmos impulsos perigosos são visíveis também na política dos Estados Unidos. Os desafios da globalização, no entanto, não podem ser enfrentados com isolacionismo e fechamento de fronteiras.

O centro precisa retomar sua força política, redescobrir a capacidade de analisar os problemas que encaramos e encontrar soluções que pairem acima do populismo raivoso. Se não conseguirmos fazer a extrema esquerda e a extrema direita recuarem antes que arrastem as nações europeias em seu experimento imprudente, o fim será o mesmo que tais situações sempre têm na história: na melhor das hipóteses, desilusão, na pior, divisão rancorosa. O centro tem de prevalecer. / TRADUÇÃO DE ROBERTO MUNIZFOI PRIMEIRO-MINISTRO DA GRÃ-BRETANHA E IRLANDA DO NORTE DE 1997 A 2007

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