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Brexit não foi surpresa

Cidadãos mais educados e ricos se beneficiaram da maior integração global aliada aos avanços tecnológicos

Por Adriana Carranca
Atualização:

Éramos 60 alunos de 45 países cursando mestrado em desenvolvimento na London School of Economics. David Lewis, antropólogo escocês criado em Bath, no oeste da Inglaterra, que se especializou nos países do sul da Ásia e era fluente em bengali e francês coordenada o departamento. Ele costumava dizer que seus alunos eram escolhidos não pelo que podiam aprender com a universidade, mas pelo que a universidade aprenderia com eles.

Lewis dividia as funções com o turco Hakan Seckinelgin, que investigava o elo entre política externa e desenvolvimento, com foco em Rússia e África subsaariana. Ele finalizava estudo sobre o impacto do conflito em Burundi na disseminação da aids. Nas horas vagas, lia nosso futuro na borra de café, após jantares animados no leste londrino.

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A história da região se mistura a cinco séculos de migração para o Reino Unido. Era o reduto das minorias, do melhor bagel da cidade, que eu atravessava desde a vizinhança caribenha onde morava até as casas de curry dos imigrantes paquistaneses de Brick Lane. A mesquita local, em um prédio do século 18 erguido por franceses protestantes, abrigou no passado três igrejas e uma sinagoga. 

Eu cursava duas aulas opcionais: estudos da pobreza, criada pelo Nobel da Economia indiano Amartya Sen, e direitos humanos internacionais, com o lendário professor Peter Townsend, integrante da Sociedade Fabiana que dedicou a vida a tentar fazer do Reino Unido um lugar menos desigual. Era conhecido como o “homem que redescobriu a pobreza” no país que todos imaginavam rico.

Townsend nos deixou em 2009. Ele ficaria profundamente decepcionado com o resultado do referendo. Mas não surpreso. A exemplo da pequena Middlesbrough, cidade industrial onde nasceu, a maioria dos eleitores votou pela saída da UE – ou Brexit. O professor e sociólogo sabia que entre a Londres cosmopolita e rica, onde lecionava, e os subúrbios que abrigam a classe trabalhadora há um abismo colossal. 

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Há meio século, economistas defendem a globalização e o livre mercado como baluartes do progresso. Ocorre que nem todos ganham com isso. Cidadãos mais educados e ricos se beneficiaram da maior integração global aliada aos avanços tecnológicos. Mas há os que se viram altamente impactados pela desindustrialização e sua substituição por setores econômicos que passaram a exigir qualificações que não tinham, depois pela migração das indústrias restantes para mercados com mão de obra mais barata. Essa classe se viu ameaçada pela abertura das fronteiras. Eles enxergaram nos novos imigrantes um risco ao emprego já escasso e ao acesso a vagas no ensino público e saúde.

Os pró-Brexit venceram pelo voto dos moradores dos subúrbios com mais de 50 anos que vivenciaram tudo isso. Os mais jovens e educados dos grandes centros urbanos votaram pela permanência na UE. Uma das principais críticas de Townsend ao Partido Trabalhista era não fazer mais para garantir a essa classe um padrão de vida mínimo. Esse tipo de política foi substituída na Europa pela austeridade que também afeta de forma desigual os mais pobres.

Isso foi largamente explorado na campanha pró-Brexit pelos partidos da direita, como o Ukip – cuja base eleitoral está nas cidades industriais do norte e West Midlands. Eles levaram a questão da migração ao centro do debate para explorar a ansiedade dos eleitores sobre seu futuro. O referendo, nesse sentido, apenas expôs ressentimentos latentes no país.

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