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CIA leu comunicações criptografadas de aliados e adversários por décadas

Por mais de meio século, governos de todo o mundo confiaram em uma única empresa para manter em segredo as comunicações de seus espiões, soldados e diplomatas. Essa empresa era da CIA.

Por Greg Miller
Atualização:

ZUG, SUÍÇA - Por mais de meio século, governos de todo o mundo confiaram em uma única empresa para manter em segredo as comunicações de seus espiões, soldados e diplomatas.

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A empresa Crypto AG conseguiu seu primeiro grande negócio com um contrato para construir máquinas de criação de códigos para as tropas americanas durante a Segunda Guerra Mundial.

Com bastante dinheiro em caixa, tornou-se a principal fabricante de dispositivos de criptografia por décadas, navegando nas ondas da tecnologia, das engrenagens mecânicas aos circuitos eletrônicos e, finalmente, aos softwares e chips de silício.

Logo da Crypto ainda pode ser visto em topo de sua sede, na Suíça Foto: Jahi Chikwendiu/The Washington Post

A empresa suíça faturou milhões de dólares vendendo equipamentos para mais de 120 países até o século 21. Entre seus clientes estavam o Irã, juntas militares da América Latina, os rivais nucleares Índia e Paquistão e até o Vaticano.

Mas o que nenhum de seus clientes jamais soube foi que a Crypto AG era de propriedade da CIA, em uma parceria altamente secreta com a inteligência da Alemanha Ocidental. Essas agências de espionagem manipularam os dispositivos da empresa para que pudessem quebrar facilmente os códigos que os países usavam para enviar mensagens criptografadas.

Esse arranjo de décadas, um dos segredos mais bem guardados da Guerra Fria, está descrito em uma história confidencial e abrangente sobre a operação, feita pela própria CIA e obtida pelo Washington Post e pela ZDF, uma emissora pública alemã, em um esforço conjunto de reportagem.

O relato identifica os oficiais da CIA que dirigiam o programa e os executivos da empresa encarregados de executá-lo. Também rastreia a origem do empreendimento, bem como os conflitos internos que quase o atrapalharam. E descreve como os Estados Unidos e seus aliados exploraram a credulidade de outras nações por anos, pegando seu dinheiro e roubando seus segredos.

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A operação, conhecida primeiro pelo codinome “Thesaurus” e, mais tarde, “Rubicon”, está entre as mais audaciosas da história da CIA.

“Foi o golpe de inteligência do século”, conclui o relatório da CIA. “Os governos estrangeiros estavam pagando um bom dinheiro aos Estados Unidos e à Alemanha Ocidental pelo privilégio de ter suas comunicações mais secretas lidas por pelo menos dois (e possivelmente até cinco ou seis) países estrangeiros”.

A partir de 1970, a CIA e sua sócia na quebra dos códigos, a Agência de Segurança Nacional (NSA, na sigla em inglês), controlaram quase todos os aspectos das operações da Crypto – presidindo, junto com seus parceiros alemães, a decisão de contratar, projetar tecnologia, sabotar algoritmos e estabelecer alvos de vendas.

Os espiões dos Estados Unidos e da Alemanha Ocidental ficaram só ouvindo.

A 5g4460, uma das primeiras máquinas de criptografia usadas pela Crypto e por diversos países Foto: Jahi Chikwendiu

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Eles monitoraram os mulás do Irã durante a crise dos reféns de 1979, forneceram à Grã-Bretanha informações sobre as forças armadas da Argentina durante a Guerra das Malvinas, acompanharam as campanhas de assassinato de ditadores sul-americanos e flagraram autoridades líbias parabenizando-se pelo bombardeio de uma discoteca de Berlim em 1986.

O programa tinha limites. Os principais adversários dos Estados Unidos, entre eles a União Soviética e a China, nunca foram clientes da Crypto. Suas suspeitas bem fundamentadas quanto aos laços da empresa com o Ocidente os protegeram da exposição, embora a história da CIA sugira que os espiões americanos descobriram muitas coisas monitorando as interações de outros países com Moscou e Pequim.

Também ocorreram violações de segurança que colocaram a Crypto sob suspeita. Documentos divulgados na década de 1970 mostraram uma correspondência extensa – e incriminatória – entre um agente da NSA e o fundador da Crypto. Declarações descuidadas de funcionários públicos, entre eles o presidente Ronald Reagan, alertaram alguns alvos estrangeiros. E, em 1992, a prisão de um vendedor da Crypto no Irã que não percebera que estava vendendo equipamentos manipulados provocou uma devastadora “tempestade de publicidade”, de acordo com a história da CIA.

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Mas a verdadeira extensão do relacionamento da empresa com a CIA e sua contraparte alemã nunca tinha sido revelada até agora.

A agência de espionagem alemã, a BND, começou a considerar que o risco de exposição era grande demais e abandonou a operação no início dos anos 90. Mas a CIA comprou a participação dos alemães e deu continuidade aos trabalhos, explorando todo o potencial de espionagem da Crypto até 2018, quando a agência vendeu os ativos da empresa, de acordo com autoridades na ativa e aposentados.

A importância da empresa no mercado global de segurança já havia caído nessa época, devido à disseminação da tecnologia de criptografia online. Outrora território de governos e grandes corporações, a criptografia agora é tão onipresente quanto os aplicativos para celulares.

Mesmo assim, a operação Crypto é relevante para a espionagem moderna. Seu alcance e duração ajudam a explicar como os Estados Unidos desenvolveram o apetite insaciável por vigilância global que foi denunciado por Edward Snowden em 2013. Também há ecos da Crypto nas suspeitas que envolvem empresas modernas com supostos vínculos com governos estrangeiros, entre elas a desenvolvedora de antivírus russa Kaspersky, um aplicativo de mensagens de texto vinculado aos Emirados Árabes Unidos e a gigante chinesa de telecomunicações Huawei.

Esta reportagem se baseia na história da CIA e em um relato paralelo da BND, também obtido pelo Post e pela ZDF, bem como em entrevistas com funcionários da Crypto e agentes de inteligência ocidentais na ativa e aposentados. Muitos falaram sob condição de anonimato, referindo-se à suscetibilidade do tema.

É difícil expressar quão extraordinárias são as histórias da CIA e da BND. Arquivos de inteligência sensíveis são periodicamente liberados e divulgados ao público. Mas é extremamente raro, talvez até mesmo inédito, vislumbrar histórias internas e oficiais sobre toda uma operação secreta. O Post conseguiu ler todos os documentos, mas a fonte do material insistiu para que apenas alguns trechos fossem publicados.

A CIA e a BND se recusaram a comentar, embora as autoridades americanas e alemãs não tenham contestado a autenticidade dos documentos. O primeiro é um relato de 96 páginas sobre a operação, concluído em 2004 pelo Centro de Estudos da Inteligência da CIA, um departamento de registro histórico interno. O segundo é uma história oral compilada por oficiais de inteligência alemães em 2008.

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Sobrepostas, as duas histórias expõem atritos entre os parceiros por causa de dinheiro, controle e limites éticos, com os alemães ocidentais quase sempre horrorizados com o entusiasmo com o qual os espiões americanos costumavam atacar os aliados.

Mas ambos os lados descrevem a operação como um sucesso muito maior que o vislumbrado pelas projeções mais loucas. Em alguns períodos, inclusive na década de 1980, a Crypto chegou a responder por aproximadamente 40% dos cabos diplomáticos e outras transmissões de governos estrangeiros, comunicações que os analistas de criptografia da NSA exploraram e decodificaram, de acordo com os documentos.

Enquanto isso, a Crypto gerou milhões de dólares em lucros, os quais a CIA e a BND repartiram e investiram em outras operações.

Os produtos da Crypto ainda estão em uso em mais de uma dúzia de países ao redor do mundo, e seu letreiro laranja e branco ainda paira no topo da antiga sede da empresa, perto de Zug, na Suíça. Mas a empresa foi desmembrada em 2018, liquidada por acionistas cujas identidades estão permanentemente protegidas pelas leis bizantinas do Liechtenstein, um pequeno país europeu com uma reputação de sigilo financeiro semelhante à das Ilhas Cayman.

Duas empresas adquiriram a maioria dos ativos da Crypto AG. A CyOne Security foi criada como parte da operação de compra e agora vende sistemas de segurança exclusivamente ao governo suíço. Já a Crypto International assumiu a marca da empresa e os negócios internacionais.

Ambas garantiram que não têm qualquer conexão permanente com nenhum serviço de inteligência, mas apenas uma alegou desconhecer a propriedade da CIA. Suas declarações foram dadas em resposta a perguntas do Post, da ZDF e da emissora suíça SRF, que também teve acesso aos documentos.

A CyOne tem vínculos mais substanciais com a Crypto, agora dissolvida, incluindo o fato de o executivo-chefe da nova empresa ter ocupado a mesma posição na Crypto AG por quase duas décadas de propriedade da CIA.

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Um porta-voz da CyOne se recusou a abordar qualquer aspecto da história da Crypto, mas disse que a nova empresa “não tem vínculos com nenhum serviço de inteligência estrangeiro”.

Juerg Spoerndli, que trabalhou na Crypto por 16 anos Foto: Jahi Chikwendiu/The Washington Post

Andreas Linde, presidente da empresa que agora detém os direitos dos produtos e negócios internacionais da Crypto AG, disse que não tinha conhecimento da relação da empresa com a CIA e a BND antes de ser confrontado com os fatos desta reportagem.

“Nós da Crypto International nunca tivemos nenhum relacionamento com a CIA ou a BND – e, por favor, cite minhas palavras”, disse ele em entrevista. “Se o que você está dizendo é verdade, sinto-me absolutamente traído, e minha família se sente traída, e sinto que haverá muitos funcionários que se sentirão traídos, assim como os clientes”.

O governo suíço anunciou que estava iniciando uma investigação sobre os laços da Crypto AG com a CIA e a BND. No início deste mês, as autoridades suíças revogaram a licença de exportação da Crypto International.

O timing da reação suíça foi curioso. Os documentos da CIA e da BND indicam que as autoridades suíças devem ter conhecimento dos laços da Crypto com os serviços de espionagem dos Estados Unidos e da Alemanha há décadas. Mas só intervieram depois de saber que as organizações de notícias estavam prestes a publicar o acordo.

As histórias, que não abordam quando ou se a CIA pôs fim a seu envolvimento, carregam as inevitáveis inclinações de documentos escritos a partir das perspectivas dos arquitetos da operação. Eles descrevem a Rubicon como um triunfo da espionagem, uma operação que ajudou os Estados Unidos a vencer a Guerra Fria, a monitorar dezenas de regimes autoritários e a proteger os interesses dos americanos e de seus aliados.

Os documentos evitam questões mais inquietantes, como o que os Estados Unidos sabiam – e o que fizeram ou não fizeram – a respeito de países que usaram máquinas Crypto para planejar assassinatos, campanhas de limpeza étnica e violações de direitos humanos.

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As revelações presentes nos documentos podem fornecer motivos para se revisitar a possibilidade de os Estados Unidos terem se encontrado em posição de intervir em atrocidades internacionais, ou pelo menos denunciá-las, e de terem optado por não o fazer, para preservar seu acesso a valiosos fluxos de inteligência.

Os arquivos tampouco tratam de dilemas éticos óbvios no centro da operação: enganar e explorar adversários, aliados e centenas de funcionários da Crypto que não sabiam da operação. Muitos viajaram pelo mundo vendendo ou prestando serviços de manutenção a sistemas fraudulentos, sem nenhuma pista de que estavam pondo em risco sua própria segurança.

Em entrevistas recentes, funcionários enganados, até mesmo aqueles que chegaram a suspeitar que a empresa estava cooperando com a inteligência ocidental, disseram que as revelações aprofundaram uma sensação de traição – de si mesmos e dos clientes.

“Você acha que está fazendo um bom trabalho, uma coisa segura”, disse Juerg Spoerndli, engenheiro elétrico que passou 16 anos na Crypto. “E aí você percebe que enganou os clientes”. Os funcionários que dirigiram o programa clandestino não expressaram arrependimento.

“Sinto algum incômodo? Zero”, disse Bobby Ray Inman, que foi diretor da NSA e vice-diretor da CIA no final dos anos 70 e início dos anos 80. “Era uma fonte muito valiosa de comunicação em partes significativas do mundo, importante para os formuladores de políticas dos Estados Unidos”. /TRADUÇÃO RENATO PRELORENTZOU

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