'Clube de brancos' no passado, diplomacia dos EUA ainda tem poucos negros

Apesar de serem 13,1% da população total, negros são apenas 5,5% dos 8 mil diplomatas americanos, segundo o Departamento de Estado.

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Por Pablo Uchoa
Atualização:

Se não fosse pelo elemento racial, o termo "clube do lírio-branco" poderia soar até poético - mas era por ele que, sem ironia, o corpo diplomático americano era conhecido pela intelectualidade negra do país nos anos 1950 e 1960. Ainda hoje, segundo especialistas, décadas de programas para incentivar a diversidade não foram suficientes para mudar a sub-representação dos negros no Serviço do Exterior americano - o braço do Departamento de Estado responsável pelas suas funções diplomáticas. Segundo dados do Departamento de Estado, os afroamericanos são apenas 5,5% dos 8 mil diplomatas que desempenham as funções relativas ao funcionamento da área. É um nível de participação semelhante ao observado nos anos 1960 e abaixo da proporção dos negros na força de trabalho do país (12%) e na população americana total (13,6%). Uma situação que a ex-secretária de Estado Condoleezza Rice, ocupando o mais alto cargo da diplomacia do país em 2008, qualificou de "inaceitável". "Posso passar o dia inteiro em reuniões no Departamento de Estado e nunca cruzar com alguém que se parece comigo", disse Rice à época. "Quero ver um Serviço do Exterior que demonstra que os negros americanos fazem parte deste grande país." Contribuição Antes de Condoleezza Rice, outro negro, Colin Powell, ocupou o cargo mais alto da hierarquia diplomática americana. Até então, os afroamericanos a atingir mais visibilidade haviam sido os diplomatas na ONU - posto, aliás, hoje ocupado pela afroamericana Susan Rice, uma das candidatas a substituir Hillary Clinton no Departamento de Estado a partir do ano que vem. Muito antes de Susan Rice, um dos primeiros a ocupar o cargo foi Ralph Bunche, homenageado em 1950 com o prêmio Nobel da Paz - o primeiro negro a receber a honraria - por seu papel na mediação do conflito israelense-palestino, além da sua importância no estabelecimento da Declaração dos Direitos Humanos da ONU. A história registra que Bunche inclusive foi sondado para ocupar cargos na diplomacia americana em Washington, mas recusou porque não queria viver na capital federal, onde as tensões raciais eram acentuadas. Nos anos 1970, outro embaixador negro americano para as Nações Unidas, Samuel Andrew, ganhou proeminência por seu papel na criação do que viria a ser a República do Zimbábue. Para Hilary Shelton, diretor da Associação Nacional para o Avanço das Pessoas de Cor (NAACP na sigla inglês), uma das mais influentes organizações civis para os direitos dos negros, os afroamericanos ganharam proeminência na política externa americana em um momento em que as nações africanas estavam conquistando a sua independência. "O papel dos negros na política externa americana foi muito importante quando aconteceu", disse Shelton à BBC Brasil. "O problema é que não vemos isso acontecer com frequência suficiente", ressalvou. Política diferente? Mais que simplesmente uma questão de igualdade de oportunidades, intelectuais americanos questionam se a política externa do país poderia ser diferente se a representação dos negros nas altas hierarquias do poder decisório fosse maior. Autor de livros sobre o tema, o historiador Michael L. Krenn, da Appalachian State University, na Carolina do Norte, crê que sim. No momento da descolonização da África, por exemplo, a aliança dos Estados Unidos com os antigos colonizadores do continente arranhou a percepção das novas nações livres em relação à diplomacia americana, argumenta. "Aquelas novas nações africanas que saíam das amarras se lembram disso, se lembram do apoio americano a regimes coloniais, repressivos e brutais", disse Krenn à BBC Brasil. Em um de seus livros - Black Diplomacy: African-Americans and the State Department, 1945-1969 (Em tradução livre, "Diplomacia Negra: Afroamericanos e o Departamento de Estado, 1945-1969") -, o historiador relata as primeiras iniciativas americanas para diversificar o rosto do país no exterior. Durante esse período, os EUA estavam sob duras críticas por causa da situação de desequilíbrio entre os direitos civis de brancos e negros. A resposta, segundo um relatório oficial de 1949, foi tentar indicar "negros excepcionais" para postos em "países apropriados" - na prática, países periféricos do chamado Terceiro Mundo. No entanto, relata Krenn, enviar os diplomatas afroamericanos para a Europa ou Ásia poderia ser mal-interpretado pelos países acolhedores. Por isso, eles ficavam restritos a postos no que ficou conhecido como "circuito negro": começavam sua carreira normalmente na Libéria, podiam ser nomeados para servir em Madagascar, Açores, Ilhas Canárias e quem sabe voltar à Libéria. "Quando comecei a escrever o livro, pensei que ia contar uma história com final feliz. Que ia chegar à conclusão de que os afroamericanos tinham aos poucos, com os movimentos pelos direitos civis, rompido os portões da discriminação e criado uma história de sucesso", disse o historiador. "Mas, programa após programa, o que vi foram fracassos retumbantes. Acabei terrivelmente decepcionado." Rosto da diversidade A história já tratou de apagar algumas das razões para o fracasso das iniciativas de integração: por exemplo, o temor de que afroamericanos eminentes, que haviam ganhado notoriedade através dos movimentos por direitos civis, fossem inclinados ao comunismo. Entretanto, Krenn ainda vê resquícios de uma "resistência" dos círculos diplomáticos de abandonar a noção de "clube do lírio-branco". Oficialmente, o Departamento de Estado americano abraça a política da igualdade de oportunidades. A assessoria do órgão disse à BBC Brasil que "se empenha em atingir a diversidade étnica e racial". "Nosso país é forte por causa das pessoas que vieram de todas as partes do globo para criar os Estados Unidos, e nossa diplomacia precisa refletir isso", disse a porta-voz. Entretanto, intelectuais como Krenn e Shelton ainda acham que a proeminência e influência de diplomatas como Bunche e Young, no passado, e Rice e Powell, mais recentemente, ainda são a regra, e não a exceção. "Muitos desses jovens afroamericanos simplesmente não olham para o Departamento de Estado como um potencial de carreira. Eles vão usar o seu talento em outros lugares, na iniciativa privada, em consultorias, nas universidades", lamenta Krenn. BBC Brasil - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito da BBC.

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