Completar álbum da Copa na Venezuela custa 37 salários mínimos

Venezuelanos desistem da mania mundial diante dos preços exorbitantes das figurinhas e álbuns; no Brasil, custo para terminar a coleção equivale a 29,4% da renda básica

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Por Redação
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CARACAS - Alejandro Souki transpira futebol, mas pela primeira vez em 24 anos não poderá colecionar as figurinhas das seleções que disputarão a Copa do Mundo de 2018 em razão da crise econômica que afeta a Venezuela. "Prefiro comer a encher o álbum", diz ele.

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Na frente de uma banca onde o álbum Rússia 2018 é vendido, em um bairro de classe média de Caracas, ele se lembra da agitação do lugar antes e durante o último mundial, disputado em 2014 no Brasil.

Jornaleiro venezuelano exibe álbum da Copa de 2018; com crise econômica que afeta o país, vendas devem ficar muito abaixo dos anos anteriores Foto: AFP PHOTO / FEDERICO PARRA

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"Aqui ficava cheio, as pessoas trocavam as figurinhas, pediam ajuda umas as outras. Era uma festa, todo mundo estava alegre, as crianças, os avós", diz Alejandro. "Agora não. Olhe o que está acontecendo", afirma este comerciante de 32 anos.

Ele diz ainda que em 2014 a polícia até precisou intervir em algumas situações para liberar a rua tomada por jovens que faziam de tudo para conseguir as figurinhas faltantes ou ganhar alguns bolívares vendendo suas repetidas para outros colecionadores.

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Souki colecionou os álbuns dos Mundiais desde a disputa nos Estados Unidos, em 1994. "Este é o primeiro que não poderei encher", lamenta. 

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Isso porque os custos para a coleção são irreais para a maior parte da população. O álbum vale 800.000 bolívares e uma caixa de pacotes de figurinhas chega a 24 milhões de bolívares. Somados, equivalem a pouco mais de US$ 100 (R$ 332) no mercado paralelo, balizador de muitos produtos importados em face da escassez de moeda estrangeira.

De acordo com os colecionadores, para reunir todas as figurinhas do álbum são necessárias duas caixas, o que elevaria o custo para até US$ 200. Alejandro diz que com esse valor consegue comprar vários produtos essenciais para manter sua família.

Um venezuelanos que receba o salário mínimo do país, hoje em 1.307.000 bolívares (US$ 5,40 no cambio paralelo) levaria 37 meses para completar sua coleção. Em 2014, era possível fazer o álbum com o equivalente a 1,7 salário mínimo.

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Continuará subindo

A Venezuela enfrenta uma grave crise em razão da queda brusca das receitas do petróleo e da condução errática da economia do país, segundo especialistas. O reflexo destes problemas é a escassez de todo tipo de bens básicos e uma hiperinflação que ultrapassará os 13.000% neste ano, de acordo com o FMI.

José Rodríguez, empregado de um restaurante, recebe mensalmente o equivalente a US$ 20. Portanto, precisaria de dez salário para encher um álbum. "É impossível", diz este jovem de 22 anos.

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Editora que publica o álbum enviou cerca de 300.000 álbuns para distribuição gratuita no país, redução de quase 95% em comparação com anos anteriores Foto: AFP PHOTO / FEDERICO PARRA

Por enquanto, sua coleção terá de continuar estagnada na da Copa de 2014 e ele também não conseguirá completar álbuns para revendê-los e conseguir uma renda extra, como fez em outras ocasiões.

E como ocorre com quase todos os preços na Venezuela, o álbum e as figurinhas serão reajustados semanalmente pela inflação e pelo aumento do dólar no mercado negro, alertaram os vendedores. 

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"A inflação está acabando com nossas possibilidades", reclama Alejandro. Na vizinha Colômbia, completar o álbum da Copa custa o equivalente a US$ 155 - e o salário mínimo no país equivale a US$ 310. 

Já no Brasil, para se conseguir as 682 figurinhas, sem considerar os cromos repetidos, o colecionador terá de desembolsar R$ 272,80, além dos R$ 7,90 do álbum, totalizando R$ 280,70 (US$ 84,90) - o salário mínimo no país é de R$ 954 (cerca de US$ 288).

Até 2022

Apesar de a Venezuela nunca ter participado de uma Copa do Mundo com sua seleção principal de futebol e de o esporte nacional ser o beisebol, a Copa do Mundo é recebida a cada quatro anos com fervor no país - o futebol ganhou espaço com a influência de grandes colônias de portugueses, espanhóis, italianos e colombianos.

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Uma prova disso é o fato de o país ter liderado as vendas regionais dos álbuns da editora Panini em 2006 e 2010. Em 2014, no entanto, já afetada pela crise, as vendas tiveram uma redução de 50%, segundo Julio López, representante de uma empresa que distribuiu o álbum e as figurinhas no país.

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Na última Copa, foram distribuídos como cortesia no país cerca de 6 milhões de álbuns, segundo López. Neste ano, serão apenas 300.000 e ele diz que dificilmente as vendas de figurinhas chegarão perto do patamar de anos anteriores.

Com a devastação econômica e a profunda tensão política na Venezuela, não há um ambiente futebolístico no país. A publicidade associada ao maior evento esportivo do mundo também está ausente nos meios de comunicação e nas grandes marcas.

Para comprar uma caixa de figurinhas e o álbum da Copa os venezuelanos precisam desembolsar o equivalente a US$ 100, quase 20 vezes o valor do salário mínimo Foto: AFP PHOTO / FEDERICO PARRA

Mesmo assim, José Freitas, que oferece o álbum em sua banca desde do dia 23 de março, não perde a esperança de que as vendas cresçam conforme o início da competição se aproxime. 

"Há quatro anos, já havia vendido cinco ou seis lotes de figurinhas (cada um com 12 caixas)", diz este comerciante de 49 anos, que também colecionará o álbum. Neste ano, porém, ele diz que será um álbum para toda família ao contrário de quatro anos atrás, quando também pagou a coleção para seus dois filhos.

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"Para que as crianças não se frustrem, muitas pessoas evitam trazê-las para não se iludirem com o álbum", conta Carlos Escalona, funcionário de outro ponto de venda.

Alejandro poderá ver as partidas sem problemas porque os jogos serão transmitidos nas emissoras abertas. Para o álbum, porém, a solução será esperar até a Copa do Catar, em 2022. "Ou terei que colecioná-lo em outro país, se eu for para um lugar onde tenha qualidade de vida", diz. / AFP

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