Consequências de Mossul

Resultado da ofensiva para retomar cidade das mãos do EI apontará futuro do Iraque

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colunista convidado
Foto do author Lourival Sant'Anna
Por Lourival Sant'Anna
Atualização:

Em agosto de 2014, eu cobria os combates entre os guerrilheiros curdos, ou peshmergas (“aqueles que enfrentam a morte”) e o Estado Islâmico (EI), no Curdistão iraquiano. Numa noite, por volta de 19 horas, ainda havia luz quando eu voltava da linha de frente com o meu guia, o jornalista iraquiano Khalid al-Ansari, e o nosso motorista curdo, que tinha um parente peshmerga, para quem ligava frequentemente, para saber a posição do EI.  A linha do conflito, naquele momento, era móvel. Pegamos a estrada que liga Mossul a Erbil, para voltar para a capital curda. Com o tempo, notamos que a estrada tinha ficado totalmente deserta – não cruzávamos mais os veículos dos peshmergas. Até que apareceu uma placa indicando Mossul para a frente. Estávamos indo na direção errada, para a “capital do califado”. O motorista deu meia volta bruscamente, e acelerou no sentido contrário. “Não queremos jantar com o EI”, brincou Khalid. “Até porque, nós seremos o jantar”, completei.  No domingo, os peshmergas pegaram essa mesma estrada, com a missão de ir até o fim dela, para retomar Mossul, a maior cidade controlada pelo EI. Enquanto os guerrilheiros curdos avançaram pelo leste e pelo norte, o Exército iraquiano, juntamente com milícias sunitas e xiitas, veio do sul. Aviões e helicópteros dos Estados Unidos dão cobertura à operação, que tem também o apoio de soldados americanos. Tanques turcos estão postados ao norte.  Combate. Será uma batalha sangrenta, não resta dúvida. Como não resta dúvida de que os combatentes do EI serão derrotados. Entretanto, o “day after” dessa conquista pode se revelar ainda mais complexo. Cada um dos componentes dessa frente formada para liberar Mossul tem seus próprios objetivos políticos – noutras palavras, sua visão do que seja essa liberação.  O primeiro-ministro iraquiano, Haider al-Abadi, é xiita, como todos os governantes do país desde a invasão americana, em 2003. Os xiitas representam dois terços da população do país, que antes era governado pela minoria sunita. Com o precário experimento com a democracia, muitos sunitas passaram a se sentir alijados do governo. Tanto que o EI, ao avançar pelas áreas sunitas do centro e do norte do Iraque, como é o caso de Mossul, foi bem recebido por parte da população – um apoio que evaporou com o sofrimento imposto aos moradores. O Exército iraquiano, treinado e equipado pelos Estados Unidos, é leal ao governo de Al-Abadi. Assim como as milícias xiitas, que contam com a simpatia do Irã, no contexto de sua rivalidade com a sunita Arábia Saudita. O governo está aliado também com a importante tribo sunita Jabouri, do presidente do Parlamento, Salim al-Jabouri, que participa da ofensiva com sua milícia.  O plano do governo, que tem a concordância dos Estados Unidos, é o atual governador da Província de Nínive – cuja capital é Mossul –, Nawfal al-Agoub, nomeado pelo primeiro-ministro, reassumir a administração. Entretanto, o ex-governador Atheel al-Nujaifi também reivindica o poder na província.  Apoiado pela Turquia e com uma base estabelecida no Curdistão (as relações entre o governo turco e os curdos iraquianos são boas, ao contrário dos curdos da Turquia e da Síria), Al-Nujaifi tem uma milícia com 5 mil combatentes, que também participam da campanha de Mossul.  História. A importante cidade pertenceu ao Império Turco Otomano. A interferência turca exaspera a Força Badr, a maior milícia xiita. “Se a Turquia enviar tanques para abocanhar outro enclave no Iraque, como ela fez na Síria, vamos transformar Mossul em um cemitério turco”, ameaça o comandante da Força Badr, Hadi al-Amari.  Os xiitas apoiam o regime sírio de Bashar Assad, da minoria alauíta, derivada do xiismo. Com apoio de tanques e artilharia turca, 2 mil combatentes árabes sunitas da Brigada Hamza avançaram no domingo pelo norte da Síria, tomando do EI o controle da simbólica cidade de Dabiq, onde, segundo a tradição islâmica, ocorrerá o Juízo Final. Como se vê, a tomada de Mossul envolve um mosaico de interesses conflitantes entre Estados, etnias e seitas religiosas. O plano é dividir a Província de Nínive entre cantões, para contemplar esses grupos, e também as minorias yazidi e shabak, habitantes das montanhas, de origem curda, que seguem seitas religiosas próprias.  Há muito que a cantonização, ou a federação, é vista como a solução para os conflitos étnicos, religiosos e políticos iraquianos. Mossul pode ser o grande ensaio. Do seu sucesso ou fracasso depende, em grande medida, o futuro do Iraque.

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