Crianças-soldados na Colômbia e a difícil volta à vida normal

Depois de levados para os centros de reabilitação do governo, muitos ex-guerrilheiros percebem que estão completamente despreparados para a vida 'fora da guerra'

PUBLICIDADE

Por Nicholas Casey
Atualização:

CALDAS, COLÔMBIA - Mélida tinha apenas nove anos quando os guerrilheiros a atraíram com a promessa de comida enquanto brincava; nos sete anos seguintes, foi refém dos rebeldes, forçada a se tornar uma criança-soldado.

A família achava que ela havia morrido em algum combate. Mélida de repente voltou para sua cidadezinha, aos 16 anos, carregando uma pistola e uma granada. Somente o avô a reconheceu, graças a uma marca de nascença no rosto.

Melida, que foi pressionada a integrar uma guerrilha colombiana quando era criança, ao lado de sua filha de 9 meses, Celeste, em sua casa em Calda Foto: Juan Arredondo/The New York Times

PUBLICIDADE

No dia seguinte, os militares cercaram sua casa, chamados por um informante que queria uma recompensa por sua cabeça. "Descobri que meu pai havia me delatado", recorda-se ela.

A Colômbia se aproxima de um acordo de paz com os rebeldes, dando fim a meio século de luta, um dos conflitos mais longos do mundo.

Mais de 220 mil pessoas foram mortas, deixando o país amargamente dividido sobre qual papel, se é que há algum, os ex-rebeldes podem ter na sociedade uma vez que deixem as armas por uma vida nova fora da selva.

Isso inclui milhares de combatentes rebeldes que foram criados desde a infância para integrar a luta armada. Muitos deles não conhecem outra coisa além de guerra.

"Já cheguei a pensar em voltar à guerrilha, porque a vida é dura aqui", disse Mélida, agora com 20 anos, que como outras ex-crianças-soldados, pediu que seu sobrenome não fosse usado, pois tem medo de represálias devido à sua ligação com os rebeldes.

Publicidade

Hoje ela diz que está presa entre dois mundos e que não pertence a nenhum deles. "É verdade, éramos crianças à espera da morte. Mas sempre penso em voltar."

As Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), dizem que não recrutam crianças. No entanto, durante uma recente visita do New York Times a um de seus acampamentos, pelo menos seis soldados, que não pareciam ter mais de 15 anos, disseram terem sido recrutados apenas alguns meses antes.

Em centros de reabilitação do governo espalhados pela Colômbia, menores contam histórias semelhantes; agora, precisam enfrentar um futuro para o qual estão completamente despreparados.

Deyanira, 19 anos, e seu amigo Freddy, também de 19 anos. Ambos lutaram pelas Forças Revolucionárias Armadas da Colômbia (Farc) quando eram crianças Foto: Juan Arredondo/The New York Times

Mélida disse que quando seus captores foram à sua casa, pelo rio, chamaram sua atenção dizendo que tinham sopa na canoa. Os guerrilheiros a levaram a um acampamento distante. Ela acordou ao lado de várias outras crianças, todas com cerca de 10 ou 11 anos.

PUBLICIDADE

O pai de Mélida, Moisés, um curandeiro tradicional do grupo Cubeo da Amazônia, estava fora na época e só voltou para a aldeia mais de um mês depois. Ele logo partiu para tentar encontrar a garota. 

Moisés foi ao acampamento da guerrilha perto da aldeia e pediu para falar com o comandante. "Eu disse que estava ali para pegar minha filha, mas ele me falou que ela não estava lá", recorda-se Moisés.

No acampamento, Mélida era chamada de Marisol e começou a ter aulas. Uma holandesa, que se juntou aos combatentes e falava um espanhol ruim, dava aulas sobre a história do comunismo, as Farc e a teoria da evolução de Darwin, algo que Mélida nunca havia aprendido em sua vila nativa.

Publicidade

Mélida também aprendia a fazer minas terrestres. Uma delas, "parecida com um peixe", era acionada por um fio na altura da canela, ela disse. "Eu disse que queria ir para casa, mas eles falaram: 'Quando você vem para um acampamento, não pode mais sair'."

Em centros de reabilitação do governo espalhados pela Colômbia, menores contam histórias semelhantes; precisam enfrentar um futuro para o qual estão completamente despreparados Foto: Juan Arredondo/The New York Times

Anos depois de ter sido raptada, rebeldes das Farc passaram por sua aldeia e falaram de Mélida para sua família. "Disseram que havia morrido em um ataque. Depois disso, me esqueci dela. Achei que era melhor esquecer", contou o pai.

Na realidade, um comandante de uns 40 anos havia se interessado por ela. No começo, ele a seguia pelo acampamento. Então um dia, quando ela tinha 15 anos, chamou-a para lavar as roupas em sua tenda.

"Me dá um beijo", ela se lembra de ele ter dito. "Não sei fazer isso", disse ela. "Então vou te ensinar", disse o comandante. "Mais tarde, implantaram um anticoncepcional no meu braço e o comandante me obrigou a ter um relacionamento com ele", contou ela. "Imagine acordar ao lado de alguém muito velho quando você é tão jovem."

Aos 16 anos, ela pediu permissão ao comandante para visitar a família. Ficou surpresa quando ele concordou. Carregando a pistola e a granada, ela voltou para o que seria um breve encontro. 

A cidadezinha estava irreconhecível. Havia uma embarcação de guerra parada perto da doca. A casa da qual ela havia sido sequestrada estava abandonada. "Disse à primeira pessoa que vi que era filha do Sr. Moisés, e eles disseram que não era possível, porque ela estava morta", contou. 

Mélida diz que não sabe por que seu pai a entregou aos militares no dia seguinte."Acho que ele não queria que eu voltasse. Queria o melhor para mim." 

Publicidade

Para milhares de jovens combatentes rebeldes, traçar um futuro é vital para o sucesso de qualquer acordo que visa acabar com mais de 50 anos de conflito armado, dizem analistas Traçando um futuro para milhares de jovens combatentes rebeldes como Melida é vital para o sucesso de qualquer acordo para acabar com 50 anos de conflito armado , dizem analistas Foto: Juan Arredondo/The New York Times

Mas Moisés, na sala de estar da filha em uma tarde recente, deu outra explicação. "Eu queria comprar uma moto." Depois de um instante, acrescentou: "Nunca me deram a recompensa que me foi prometida".

Segundo Mélida, os soldados a interrogaram em várias bases. Qual era seu verdadeiro nome, perguntaram. Quem eram seus comandantes? Onde ficavam as bases das Farc?

Depois de duas semanas, Mélida foi levada para um centro de reabilitação do governo para jovens que haviam deixado a guerrilha. Ela ficava em uma montanha em uma parte diferente do país e nunca vira os Andes antes de ter sido capturada.

O centro abrigava aproximadamente 20 outras ex-crianças-soldados. As aulas e tarefas diárias, para ajustá-los à vida civil, eram novidade para ela. Outros requisitos, como outro implante anticoncepcional, lembrou-a das Farc.

A guerra estava constantemente na mente de Mélida. "Quando me levantava, ia pegar meu rifle embaixo da cama e percebia que não havia nada lá", contou.

Fabio, de 19 anos, na casa onde ele aluga um quarto de Dora, 64 anos. Ela trabalhava na cozinha de um centro de crianças desmobilizadas para o qual Fabio foi enviado Foto: Juan Arredondo/The New York Times

Víctor Hugo Ochoa, diretor do centro, disse que Mélida chegou revoltada e ameaçou fugir muitas vezes. "Foi difícil intervir", disse ele. À noite, ela saía do centro com um homem chamado Javier, cuja mãe era cozinheira lá. Ele tinha nove anos a mais que ela, mas os dois saiam para beber e se divertir em uma cidade vizinha.

Javier tinha uma história ruim com os rebeldes. Em 2004, seu irmão, um soldado, foi morto por um atirador. Sua família nunca perdoou os guerrilheiros, uma tensão no coração de qualquer acordo de paz.

Publicidade

Apesar disso, Mélida e Javier perceberam que estavam apaixonados. "Por que tinha que ser ela? Do grupo que matou meu irmão?"

Esses novos laços começaram a mudá-la, disse Ochoa. Conheceu suas duas primas, María e Leila, também ex-membros das Farc que haviam deixado o centro. A mãe do Javier, Dora, ensinava Mélida a cozinhar e a limpar, assumindo o papel da mãe.

Melida visita túmulo de prima do maridoque, como ela, também foi pressionada a entrar para as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) Foto: Juan Arredondo/The New York Times

Um dia, o anticoncepcional de Mélida falhou e ela ficou grávida. Sua filha, Celeste, nasceu no ano passado. As tarefas diárias da maternidade consumiram Mélida por semanas, mas a revolta permaneceu.

"Ela me disse que foi criada para a guerra, para não se importar e não para ser uma amante. Falou que amava, mas me pediu para entender que sua vida não era fácil", disse Javier.

Recentemente, sua prima Leila, ex-membro das Farc, cometeu suicídio. Mélida às vezes visita seu túmulo. Dora diz que Mélida é forte demais para tirar a própria vida, mas tem medo que ela retorne à guerrilha.

"Ela é uma boa mãe e coloca a filha em primeiro lugar, mas também me diz que está entediada e que não gosta desta vida. E eu lhe digo que, se quiser ir embora, pode ir. Mas tem que pensar na menina. Peço que deixe Celeste comigo."

The New York Times News Service/Syndicate - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times

Publicidade

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.