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Cuba após o líder

Morte de Fidel Castro elimina a resistência à abertura econômica da ilha na direção do capitalismo de estilo chinês ou vietnamita, como deseja Raúl Castro há muito tempo

colunista convidado
Foto do author Lourival Sant'Anna
Por Lourival Sant'Anna
Atualização:

A morte de Fidel Castro remove um obstáculo às reformas rumo a um “capitalismo de Estado” em Cuba. Sobretudo, elimina uma ambivalência até então sempre presente no núcleo do regime. A Raúl Castro sempre foi atribuída a linha dura repressiva contra qualquer tipo de oposição e crítica, e a Fidel, a resistência à abertura econômica. Por último, e não menos importante: rouba do regime o extraordinário carisma de Fidel, sua figura lendária, literalmente representada na sua estatura incomum, sua retórica abrasiva e incansável, em contraste com os modos contidos, a disciplina, sobriedade e frieza do irmão mais novo. Tudo isso aponta para uma mudança substancial, mesmo que não brusca.

Desde a consolidação do regime revolucionário em 1959, Raúl se firmou como o “braço armado”, por assim dizer, de seu irmão. Embora Fidel tenha ostentado até a morte o título “comandante em chefe da Revolução”, e ambos tenham lutado lado a lado, no fracassado assalto ao Quartel Moncada, em 1953, e na ofensiva final da Sierra Maestra, coube a Raúl a supervisão sobre o fuzilamento de 100 partidários do ditador Fulgencio Batista, já de início e, a partir daí, sobre a repressão que acompanhou o regime nessas quase seis décadas.

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Ministro da Defesa, Raúl teve seu batismo de fogo em 1989. Devido a uma sensação de Fidel de que seu poder estava sob ameaça, ele teve de ordenar a prisão, seguida de execução, de um amigo, o popular general Arnaldo Ochoa, responsabilizado pelo tráfico de cocaína que abastecia a ilha com moeda forte, sob vista grossa de todos.

Em seguida, vieram a dissolução da União Soviética, que sustentava Cuba com combustíveis, maquinário e alimentos e, com ela, o “período especial”, quando os cubanos emagreceram - essa é a imagem de quem viveu aquela época -, tamanha a crise de desabastecimento. Nos anos 90, coube a Raúl vencer a relutância de Fidel em flexibilizar o sistema econômico, de modo a permitir investimentos estrangeiros, em joint ventures com estatais locais, e a abertura de pequenos negócios pelos cubanos. Fidel não escondeu sua amargura e temor com esse movimento que, para ele, ameaçava as conquistas da Revolução.

Substituição. A Venezuela assumiu o lugar da URSS como sustentáculo econômico do regime, a partir de 1999, e as reformas foram congeladas. Cuba passou a exportar médicos e professores em troca de dólares, deteriorando seu já precário sistema de saúde e ensino. O programa Mais Médicos, do Brasil, faz parte dessa política. Em 2014, a economia venezuelana começou a perder força, com a queda do preço do petróleo e a redução de sua capacidade de produção, pelo sucatamento da estatal PDVSA.

Cuba produz 50 mil barris de petróleo por dia e recebia, até o ano passado, cerca de 100 mil barris da Venezuela. Esse suprimento sofreu um corte de 40% neste ano. A redução da ajuda coincide com o corte na produção da própria Venezuela, que caiu em 170 mil barris por dia, para 2,18 milhões. Cuba usava esse petróleo não só como combustível e fonte de energia elétrica, mas também como fonte de receita, revendendo o excedente para obter moeda forte. As quedas do preço e do suprimento cortaram esse cordão umbilical.

O governo adotou o racionamento de energia elétrica em junho, reduzindo jornadas de trabalho dos funcionários públicos para economizar. Segundo dados oficiais, a economia cubana cresceu apenas 1% no primeiro semestre deste ano, enquanto em 2015 o crescimento foi de 4%. Neste semestre, as perspectivas são mais sombrias. O “período especial” voltou a rondar.

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É nesse estado de coisas que Fidel sai de cena. Nos últimos anos, mesmo sob os protestos do irmão, Raúl implementou novas reformas, possibilitando o comércio de casas e de automóveis e a abertura de novos negócios. O reatamento das relações diplomáticas com os EUA também foi iniciativa dele, criticada publicamente por Fidel em suas colunas no jornal estatal Granma. Essa política está ameaçada agora, com a eleição de Donald Trump. E o Congresso americano, dominado pelos republicanos, recusou-se a abolir o embargo econômico contra a ilha.

Mudanças. O regime aumentou a liberdade para viagens - os cubanos, agora, podem voltar à ilha até dois anos depois da partida sem perder a cidadania. Tudo isso permitiu o aumento das remessas de dinheiro e de produtos de parentes no exterior para a ilha. Ao mesmo tempo, segundo dissidentes cubanos, a repressão política continuou intensa.

Essa combinação de relativa liberdade econômica, com parcerias entre investidores estrangeiros e o Estado, de um lado, com rígida preservação do regime de partido único, de outro, poderá agora se consolidar, levando o país na direção do capitalismo de estilo chinês ou vietnamita, como deseja Raúl há muito tempo. Entretanto, não se deve esperar mudanças drásticas. Como o próprio Raúl gosta de dizer: “sem pressa, mas sem pausa”. E agora sem a sombra ao mesmo tempo controladora e protetora de seu idolatrado irmão.

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