EI deixa saudades do Taleban

Surgimento do Estado Islâmico no Afeganistão inaugura uma nova era de brutalidades

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Por Sudarsan Raghavan
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Os combatentes do Estado Islâmico que tomaram o Vale Mahmad jogavam pimenta nas feridas dos seus inimigos, contaram os aldeões. Então, queimavam suas mãos em cubas de óleo fervente. Vendado, um grupo de aldeões foi torturado e seus corpos foram dilacerados com explosivos enterrados debaixo deles. "Arrancaram os dentes do meu irmão e depois o forçaram a se sentar sobre as bombas", lembrou Malik Namos, um ancião da tribo que fugiu do vale com milhares de outros aldeões. "Eles são mais perversos do que o Taleban e qualquer outro grupo que eu conheça." Em guerra há mais de 30 anos, os afegãos estão familiarizados com a violência perpetrada por vários exércitos e milícias. Entretanto, o surgimento do Estado Islâmico nesta região inaugurou uma nova era de brutalidades. O grupo radical nascido no Oriente Médio acrescenta uma nova dimensão à disputa pelo futuro do Afeganistão, uma das principais razões pelas quais o presidente Barack Obama anunciou o plano para manter cerca de 5 mil soldados americanos no país. Em algumas áreas, os decretos emitidos pelo EI ameaçam pôr a perder as conquistas nas áreas de educação e dos direitos das mulheres conseguidas graças à ajuda dos EUA. E converteram o Taleban, que no entanto também cometeu atrocidades, numa alternativa melhor nas regiões sem controle. Na Província de Nangahar, funcionários locais, anciãos e aldeões que fugiram de áreas sob o controle dos militantes relatam que foram apanhados no meio de uma violenta batalha pelo poder e pelo território entre os combatentes do EI e o Taleban. Mesmo apresentando novas versões da crueldade empregada por seus equivalentes do Oriente Médio, os militantes no Afeganistão são produto de um conjunto diferente de circunstâncias e foram para a luta com uma perspectiva diferente. Embora no Oriente Médio o grupo tente criar um califado global, alguns dos seus membros têm ambições locais: a recriação da ordem social medieval do Taleban, particularmente os tabus impostos há 20 anos às mulheres, estavam desaparecendo em muitas áreas desde então. Na maioria, trata-se de afegãos e de membros descontentes do Taleban paquistanês e sua deserção foi em parte uma decorrência da revelação, há poucos meses, de que seu líder supremo, o mulá Omar, quase cego, estava morto havia mais de dois anos. Não se sabe ao certo se eles mantêm vínculos operacionais ou financeiros com a base do EI na Síria, se estão inspirados pelo grupo ou se usam seu nome para chamar a atenção. Tampouco está claro de onde obtêm os consideráveis recursos e o pesado armamento que utilizam. Ao contrário do conflito na Síria e no Iraque, que se baseia nas cisões sunitas e xiitas, no Afeganistão tanto as vítimas quanto os algozes são tipicamente muçulmanos sunitas, das mesmas tribos de etnia pashtun. E a luta em Nangahar trava-se tanto pelo controle do lucrativo comércio de narcóticos quanto pela influência religiosa e regional, segundo funcionários da ONU. Desde a saída da maior parte das tropas americanas e internacionais, em dezembro, o EI vem invadindo persistentemente áreas do Afeganistão. Um relatório da ONU divulgado no mês passado concluiu que o grupo tem um número crescente de simpatizantes e estava recrutando seguidores em 25 das 34 províncias da nação. Mesmo assim, os relatos locais sugerem que a ideologia do grupo não conta com um forte apoio entre a maioria dos afegãos. Em Nangahar, na fronteira paquistanesa, os militantes conseguiram implementar sua maior base e manter uma presença significativa em mais de 25% dos distritos da província. Desde o fim de julho, dezenas de milhares de pessoas fugiram da região a pé. Muitas chegaram a Sar Shahi onde ocuparam casas inacabadas ou acamparam no quintal de amigos. No verão de 2014, do outro lado da fronteira, chegaram cerca de 100 combatentes do Taleban paquistanês. Estavam fugindo de uma ofensiva do Exército paquistanês cuja finalidade era acabar com os rebeldes e logo uniram forças com uma facção do Taleban afegão, também de etnia pashtun. Foi um momento bastante oportuno para o aparecimento de uma milícia. O novo governo compartilhado com o apoio dos EUA estava paralisado em razão de conflitos entre facções. Além disso, o Paquistão estava sendo pressionado pelos EUA a pôr um freio aos rebeldes taleban que haviam financiado por muito tempo, permitindo ainda que construíssem refúgios no seu território. A inesperada consequência disto foi a expulsão de um número maior de militantes radicais para o outro lado da fronteira. Em janeiro, os líderes do EI na Síria anunciaram a criação do seu braço Khorasan, termo antigo para designar uma área que inclui o Afeganistão e o Paquistão. Depois, espalhou-se a noticia de deserções dos taleban e do recrutamento pelo EI. Inicialmente, os visitantes e os membros do Taleban local continuaram aliados. Mas em meados do ano apareceram sinais de uma transformação. Nas mesquitas, os aldeões notaram que os paquistaneses e alguns aliados afegãos haviam adotado a austera linha wahabbi do Islã sunita, embora a grande maioria dos afegãos pratique a versão moderada hanafi. Em julho, tiveram início os confrontos depois que o Taleban afegão invadiu as casas dos paquistaneses e encontrou uma quantidade de armas escondidas. Naquele dia, os visitantes, que atualmente incluem dezenas de desertores do Taleban afegão, depuseram suas bandeiras brancas e ergueram a negra, do EI. "Foi aí que compreendemos que eles haviam se tornado EI", disse Rostam Sayeed, um operário de 20 anos. / Tradução de Anna Capovilla *É correspondente em Cabul

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