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Erdogan estava certo ao desconfiar de um golpe

Líder de um país onde quarteladas são comuns, político islamista via no Egito de Morsi um exemplo do que poderia ocorrer em Ancara

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Por Redação
Atualização:

O presidente turco, Recep Tayyip Erdogan – o mais influente governante do país desde seu fundador, Mustafa Kemal Ataturk –, é obcecado com o Egito. Há três anos, um golpe militar no Cairo derrubou o presidente eleito, Mohamed Morsi, prendendo-o, com os aliados, investindo furiosamente contra sua Irmandade Muçulmana e instalando um regime que continua no poder até hoje.

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Morsi, um islamista, parece inspirar Erdogan e seu Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP), organização de centro-direita construída sob a ideologia do nacionalismo religioso muçulmano sunita. Erdogan sofreu com a derrubada de Morsi e o desmantelamento brutal de seu governo, que, embora impopular, conquistara eleitoralmente o mandato.

No ano passado, quando o governo egípcio de Abdel Fatah Sissi, o principal arquiteto do golpe, condenou Morsi à morte, Erdogan ficou furioso tanto com o governo do Cairo quanto com o Ocidente, que havia acompanhado a extinção dessa democracia árabe com o que pareceu ser indiferença, senão alívio.

O paralelo com o Egito é importante no momento em que a Turquia se vê diante da tentativa de golpe de sexta-feira. Até ontem, não parecia que os autores do golpe estivessem sendo beneficiados por um cenário estilo Egito: todos os principais partidos de oposição turcos alinharam-se com o governo, apesar das diferenças políticas, e os protestos nas ruas eram em apoio a Erdogan e ao AKP. Em duas campanhas eleitorais, no ano passado, Erdogan falou de forças obscuras trabalhando contra a democracia e seu governo – conspiradores estrangeiros e mesmo uma “cruzada”.

Falando em público, ele e outros membros do governo também dirigiram sua ira contra o movimento Gülen, com base nos ensinamentos espirituais de um clérigo idoso que vive na Pensilvânia. Os gulenistas, antes amigos de Erdogan, agora supostamente tentam sabotar seu governo por meio de simpatizantes infiltrados em vários órgãos do Estado.

Para observadores externos, a paranoia de Erdogan parece um deliberado cálculo político destinado a agrupar conservadores e nacionalistas turcos sob sua bandeira. No entanto, ele talvez tivesse alguma razão.

A Turquia tem uma longa história de golpes. Militares derrubaram governos em 1960, 1971 e 1980 – quando os golpistas puseram em vigor a atual Constituição. Em 1997, duras “recomendações” dos militares deram início ao que se chamou de “golpe branco”, forçando um partido islamista a deixar o governo.

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No entanto, parecia que desde que Erdogan e o AKP chegaram ao poder, em 2002, a era do golpismo estivesse encerrada na Turquia. Com as consideráveis reformas sociais e econômicas que fez na Turquia, Erdogan e seus aliados pareciam solidamente consolidados em todos os níveis de poder, com um mandato majoritário ajudado por uma oposição desestruturada, um Judiciário sempre favorável e uma cúpula militar tornada submissa após uma série de julgamentos de supostos conspiradores.

Em anos recentes, porém, o presidente possivelmente se excedeu. Após uma década como primeiro-ministro, ele venceu eleições para a presidência – tecnicamente, uma função cerimonial – e passou a modelar a república turca a sua imagem. Partiu para uma presidência executiva, com poderes aumentados. Em Ancara, construiu para si um enorme palácio.

Segundo acusam inúmeros grupos de direitos humanos e partidos oposicionistas, o estilo autoritário de Erdogan progrediu rapidamente. Os principais jornais e canais de TV opositores foram fechados ou encampados. Jornalistas e dissidentes foram presos sob acusações diversas. Até seu outrora mais próximo aliado político foi alijado do cenário.

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Enquanto isso, o desastre na Síria – e a desastrosa política turca na região – alimentava a inquietação no país. A insurgência curda voltou com força. O Estado Islâmico, que, segundo críticos, ganhou terreno com a negligência turca, começou a atacar alvos dentro da Turquia. O ataque ao aeroporto de Istambul, no mês passado, marcou uma nova e perigosa escalada para um conflito aberto entre jihadistas e o Estado turco.

De que a Turquia chegou ao caos, não resta dúvida. Sua democracia parece fadada a enfrentar tempos difíceis, não importando quem – Erdogan ou os golpistas – prevaleça. / TRADUÇÃO DE ROBERTO MUNIZ

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