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Estado Islâmico já enviava agentes do terror para Europa muito antes de Bruxelas

Durante 2012 e 2013, o grupo de jihadistas que se transformou no Estado Islâmico foi criando raízes na Síria. Mesmo quando começou a recrutar estrangeiros, políticos americanos e europeus continuaram a vê-lo como um ramo menor da Al-Qaeda

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Por Redação
Atualização:

No dia em que deixou a Síria com instruções para realizar um ataque terrorista na França, Reda Hame, 29 anos, técnico de informática em Paris, era membro do Estado Islâmico (EI) há pouco mais de uma semana.

Seu passaporte francês e sua experiência em tecnologia da informação faziam dele o recruta ideal para um grupo em rápida expansão dentro do EI, dedicado a aterrorizar a Europa. Durante alguns dias, foi levado a um parque, recebeu algumas instruções sobre como usar um rifle de assalto, manusear uma granada e instruído a atirá-la contra a imagem de uma pessoa. Esse curso rápido incluiu usar um programa de criptografia chamado TrueCrypt, o primeiro passo em um processo para proteger as comunicações com seu mentor na Síria.

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Esse orientador, cujo codinome era Pai, levou Hame para a fronteira turca e ordenou que escolhesse um alvo fácil, atirasse no maior número possível de civis e mantivesse reféns até que as forças de segurança fizessem dele um mártir. "Seja corajoso", disse Pai, abraçando-o.

Hame foi enviado por um grupo do Estado Islâmico obcecado com a ideia de atacar a Europa pelo menos dois anos antes dos ataques mortais em Paris, em novembro, e em Bruxelas, em março. Nessa época, o grupo despachou vários agentes treinados na Síria com o objetivo de realizar pequenos ataques feitos para testar e sobrecarregar o aparato de segurança do continente, ao mesmo tempo em que as investidas mais mortíferas já estavam em andamento, de acordo com processos judiciais, transcrições de interrogatórios e registros de escutas europeias obtidos pelo jornal The New York Times.

As autoridades dizem agora que os sinais dessa máquina terrorista já podiam ser vistos na Europa desde o início de 2014. Mesmo assim, os atentados não eram levados em consideração e descritos como atos isolados ou aleatórios, e a conexão com o EI era ignorada ou minimizada. "Isso não apareceu de repente nos últimos seis meses. Eles consideram ataques externos desde que o grupo chegou à Síria, em 2012", disse Michael T. Flynn, general-tenente aposentado do Exército que comandou a Agência de Inteligência de Defesa de 2012 a 2014.

Hame foi preso em Paris em agosto, antes que pudesse atacar, e estava entre pelo menos 21 agentes treinados que conseguiram voltar para a Europa. Os registros de seus interrogatórios dão indicações das origens e da evolução de um ramo do EI responsável pela morte de centenas de pessoas em Paris, Bruxelas e outros lugares.

As autoridades europeias agora sabem que Pai, o mentor de Hame, era Abdelhamid Abaaoud, o agente belga que selecionou e treinou combatentes para atentados na Europa e que voltou para supervisionar o ataque terrorista de Paris, o mais mortífero em solo europeu em mais de uma década.

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Os integrantes do grupo de operações externas de Abaaoud também estavam por trás dos ataques de Bruxelas, bem como de um atentado frustrado em um subúrbio de Paris, e outros são procurados, dizem autoridades belgas e francesas. "Há uma fábrica lá. Estão fazendo todo o possível para atacar a França, ou então a Europa", contou Hame ao serviço de inteligência francês após a prisão.

Durante grande parte de 2012 e 2013, o grupo de jihadistas que acabou se tornando o Estado Islâmico foi criando raízes na Síria. Mesmo quando começou a recrutar agressivamente estrangeiros, principalmente europeus, os políticos nos EUA e na Europa continuaram a vê-lo como um ramo menor da Al-Qaeda, mais interessado em conquistar e controlar territórios.

Uma das primeiras pistas de que o EI estava entrando no negócio do terrorismo internacional veio no dia 3 de janeiro de 2014, quando a polícia grega parou um táxi na cidade de Orestiada, a menos de 6,5 km da fronteira turca. Dentro dele estava um cidadão francês de 23 anos, chamado Ibrahim Boudina, que regressava da Síria. Em sua bagagem, os policiais acharam 1,5 mil euros (quase US$1,7 mil) e um texto em francês intitulado "Como fazer bombas artesanais em nome de Alá". Porém, como não havia nenhum mandado de prisão na Europa, os gregos o liberaram, de acordo com registros detalhando a investigação francesa.

Boudina já estava na lista de vigilância da França e era parte de uma célula de 22 radicalizados em uma mesquita na cidade de Cannes. Quando policiais franceses foram notificados sobre o ocorrido na Grécia, já estavam colocando escutas telefônicas entre amigos e parentes de Boudina. Várias semanas depois, sua mãe recebeu uma chamada de um número na Síria. Antes de desligar, foi informada que seu filho havia sido "enviado em uma missão", de acordo com uma transcrição parcial da chamada.

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A polícia estabeleceu um perímetro ao redor do apartamento da família perto de Cannes, prendendo Boudina em 11 de fevereiro de 2014. Em um depósito no mesmo prédio, encontraram três latas de Red Bull com 600 gramas de TATP, o explosivo instável à base de peróxido que mais tarde seria mortalmente usado em Paris e Bruxelas.

Foi apenas dois anos mais tarde, na página 278 de um relatório com 359 que os investigadores revelaram um detalhe importante: as mensagens do Facebook de Boudina mostravam que ele estava na Síria no final de 2013, no local de uma grande batalha travada por um grupo que se autodenominava "Estado Islâmico do Iraque e da Síria".

De acordo com uma declaração da agência de inteligência da França, ele foi o primeiro cidadão europeu a viajar para a Síria, se juntar ao EI e voltar com o objetivo de cometer atos de terrorismo. No entanto, seus laços com o grupo se perderam em meio à papelada francesa e a conexão com casos posteriores não foi verificada.

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Incluindo Boudina, pelo menos 21 combatentes treinados pelo Estado Islâmico na Síria foram mandados para a Europa com a intenção de promover assassinatos em massa, de acordo com uma verificação feita pela revista Times com base em registros da agência de inteligência da França. Os militantes chegavam aos poucos e constantemente, retornando sozinhos ou em duplas, a cada dois ou três meses, ao longo de 2014 e da primeira metade de 2015.

Como os assassinos em Paris e Bruxelas, todos os agentes anteriores eram francófonos – na maioria cidadãos franceses e belgas, além de imigrantes de ex-colônias francesas, incluindo o Marrocos.

Foram presos na Itália, Espanha, Bélgica, França, Grécia, Turquia e Líbano com planos para atacar empresas judaicas, delegacias de polícia e um desfile de carnaval. Tentaram abrir fogo em vagões de trens lotados e em congregações de igrejas. Estiletes e armas automáticas, walkie-talkies e celulares descartáveis, além de produtos químicos para fazer TATP foram encontrados em seus pertences.

A maioria das tentativas falhou e as autoridades não conseguiram identificar, ou pelo menos indicar aos colegas, as ligações dos homens com o nascente Estado Islâmico.

Em uma das ocasiões mais significativas, Mehdi Nemmouche, que voltou da Síria por Frankfurt, na Alemanha, e seguiu de carro para Bruxelas, saiu atirando a esmo no Museu Judaico na Bélgica, matando quatro pessoas, no dia 24 de maio de 2014. Mesmo quando a polícia encontrou um vídeo em sua posse, no qual ele afirmava a responsabilidade pelo ataque ao lado de uma bandeira com as palavras "Estado Islâmico do Iraque e da Síria", a procuradora-adjunta da Bélgica, Ine Van Wymersch, desconsiderou qualquer conexão. "Ele provavelmente agiu sozinho", disse ela a repórteres na época.

*The New York Times News Service/Syndicate – Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times.

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