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É prêmio Nobel de Literatura. Escreve quinzenalmente.

Opinião|Flaco e o muro

Para manter o alto nível de vida, países desenvolvidos devem abrir suas fronteiras

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Atualização:

Uma boa reportagem sobre o mundo real pode ser tão fascinante e instrutiva como um grande conto ou um romance magnífico. Se resta alguma dúvida, peço que leiam Bring On the Wall, relato de Ioan Grillo publicado no New York Times, em 7 de maio. 

Conta a história de Flaco, um contrabandista mexicano que vive a vida contrabandeando drogas e imigrantes ilegais para os Estados Unidos desde seus tempos de colégio, aos seus 15 anos. Mesmo tendo ficado preso por 5 anos, ele não se arrependeu do ofício, ainda menos agora quando, segundo diz, sua ilícita profissão está mais próspera que nunca.

Nos mercados de apostas britânicos, as chances de que Donald Trump não irá concluir seu mandato de quatro anos estavam empatadas e aumentaram em 55% no site Betfair Foto: EFE/Michael Reynolds

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Quando Flaco começou a traficar maconha e cocaína ou compatriotas e centro-americanos que haviam cruzado o Deserto de Sonora sonhando em entrar nos Estados Unidos, o contrabando era um ofício dos chamados “coiotes”, que trabalhavam por conta própria e costumavam cobrar 50 centavos por imigrante. Mas, à medida que as autoridades americanas fortificavam a fronteira com grades, muros, alfândegas e policiais, o preço foi subindo - agora cada imigrante paga no mínimo US$ 5 mil por travessia - e os cartéis de droga, sobretudo os de Sinaloa, Juárez, do Golfo e Los Zetas, assumiram o comando. 

Hoje em dia, controlam, não sem conflitos frequentes e ferozes entre eles, as passagens secretas dos 3 mil quilômetros ao longo dos quais essa fronteira se estende, desde as margens do Pacífico até o Golfo do México. O imigrante que tenta cruzar sozinho, sem sua ajuda, é castigado pelos cartéis, às vezes com a morte.

As maneiras de burlar a fronteira são infinitas, e Flaco mostrou a Ioan Grillo bons exemplos da engenhosidade e astúcia dos contrabandistas: as catapultas ou trampolins que passam por cima do muro, os esconderijos construídos dentro de trens, caminhões e carros e também os túneis, alguns deles com luz elétrica e ar-condicionado, para que os usuários possam desfrutar de uma travessia confortável. 

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Quantos túneis são? Devem ser muitos, além dos 224 que a polícia descobriu entre 1990 e 2016, pois, de acordo com Flaco, o negócio, em vez de cair, prospera com o aumento das proibições. Nas suas palavras, existem tantos túneis em operação que a fronteira entre o México e os Estados Unidos “parece um queijo suíço”.

Isso significa que o famoso muro para o qual Trump busca obstinadamente os milhares de milhões de dólares não preocupa os cartéis? “Ao contrário, quanto mais obstáculos para cruzar, mais bem-sucedido é o negócio”, afirma Flaco. Ou seja, aquela velha história de que “ninguém sabe para quem trabalha” se cumpre nesse caso de maneira cabal: os cartéis mexicanos estão entusiasmados como os benefícios que poderão resultar dessa obsessão anti-imigratória do novo mandatário americano. E, sem dúvida, isso servirá também como grande incentivo para que a infraestrutura da ilegalidade atinja novos picos de desenvolvimento tecnológico.

A cidade de Nogales, onde nasceu Flaco, espalha-se até a fronteira, motivo pelo qual muitas das casas possuem passagens subterrâneas que se comunicam com casas do outro lado. Então, cruzar e descruzar entre os dois países é rápido e muito fácil. Ioan Grillo teve até mesmo a oportunidade de ver um desses túneis, que começava em uma tumba do cemitério da cidade. E também mostraram a ele como a máfia, por meio de operações tecnológicas audazes, converteu as largas tubulações de escoamento compartilhadas entre ambos os países na altura do Arizona em corredores para o transporte de drogas e imigrantes.

O negócio é tão próspero que a máfia pode pagar aos motoristas, fiscais de alfândega, ferroviários e empregados salários melhores que os pagos pelo Estado ou pelas empresas particulares, contando, assim, com um sistema de informações que faz frente ao oficial e com meios suficientes para pagar bons advogados que defendam seus colaboradores nos tribunais e na administração. 

Como diz Grillo em sua reportagem, parece bastante absurdo que, nessa fronteira, os Estados Unidos estejam gastando quantias vertiginosas de dinheiro para impedir o tráfico ilegal de drogas, enquanto em muitos Estados americanos já se legalizou, ou será legalizado muito em breve, o uso da maconha e da cocaína. E, eu adicionaria, enquanto a demanda por imigrantes - ilegais ou não - continua forte, tanto no campo, sobretudo em épocas de semeadura e colheita, quanto nas cidades, onde certos serviços manuais basicamente só funcionam graças aos imigrantes latino-americanos - em Chicago, não vi um restaurante, café ou bar que não estivesse repleto deles.

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Grillo lembra os milhares de milhões de dólares já gastos pelos Estados Unidos desde que Richard Nixon declarou a “guerra às drogas” e lembra também como, apesar disso, o consumo de entorpecentes tem crescido paulatinamente, estimulando a produção e o tráfico, causando extrema violência e corrupção. Basta observar países como Colômbia e México para ver que a máfia ligada ao narcotráfico deu origem a enormes transtornos políticos e sociais e ao crescimento cancerígeno da criminalidade, até se converter na razão de ser de uma suposta guerra revolucionária que, ao menos em teoria, parece estar chegando ao fim.

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Com a imigração ilegal acontece algo parecido. Tanto na Europa quanto nos Estados Unidos surgiu uma paranoia sobre o tema, fazendo com que - mais uma vez na história - sociedades em crise busquem um bode expiatório para os problemas sociais e econômicos de que padecem e, evidentemente, os imigrantes - gente de outra cor, outra língua, outros deuses e outros costumes - são os escolhidos. 

Quer dizer, aqueles que vêm tomar o emprego, vêm cometer abusos, roubar e violar, vêm trazer o terrorismo e saturar os setores de saúde, de educação e de aposentadora. Dessa forma, o racismo, que parecia ter esvanecido (estava só oculto e à margem), conquista agora uma espécie de legitimidade, até mesmo em países como Suécia ou Holanda, que até recentemente eram vistos como modelos de tolerância e coexistência.

A verdade é que os imigrantes agregam aos países que os hospedam muito mais do que recebem deles: todos os dados e pesquisas confirmam esse fato. E a imensa maioria deles são contra o terrorismo, do qual, aliás, são sempre as vítimas mais numerosas. E, finalmente, ainda que sejam humildes e desamparados, os imigrantes não são bobos, não vão aos países onde sua mão de obra não é requisitada, mas sim àquelas sociedades onde, precisamente pelo desenvolvimento e pela prosperidade alcançada, os nativos já não querem assumir certos ofícios, funções e tarefas imprescindíveis para que uma sociedade funcione - e ela segue funcionando graças a eles. 

As agências internacionais, fundações e centros de estudo nos lembram disso o tempo todo: se os países desenvolvidos querem manter seus altos níveis de vida, precisam abrir suas fronteiras à imigração. Não de qualquer maneira, é claro: promovendo a integração dos imigrantes e não a sua marginalização em guetos que são ninhos de frustração e violência, oferecendo a eles oportunidade como as que os Estados Unidos, por exemplo, ofereciam antes da demagogia nacionalista e racista de Trump. Em outras palavras, é muito simples: a única maneira verdadeiramente funcional de acabar com o problema da imigração ilegal e do tráfico mafioso é a legalização das drogas e a abertura irrestrita das fronteiras.

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Opinião por Mario Vargas Llosa

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