Fuga de braços em razão do Brexit atormenta britânicos

Falta de trabalhadores tem impacto na economia do Reino Unido, principalmente no setor agrícola

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Por Kimiko de Freytas-Tamura
Atualização:

Para Ross Mitchell, o primeiro indício de que alguma coisa estava errada foi o grupo de búlgaros que ele havia contratado para colher mirtilos não aparecer para trabalhar. “Será que foram sequestrados?”, perguntou-se. A explicação era mais simples: os 30 búlgaros foram seduzidos pelo recrutador de uma fábrica que ofereceu salários mais altos. Por isso, nunca chegaram ao destino original.

Búlgaros trabalham plantando morangos na Escócia; queda da imigração reduziu oferta de mão de obra Foto: Kieran Dodds/The New York Times

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O sumiço significou para Mitchell, que fornece frutas para uma grande rede de supermercados, a perda de 50 toneladas de mirtilo avaliadas em US$ 680 mil. Mas ele não está sozinho. Histórias parecidas são contadas por um grande número de empregadores. 

O fenômeno tem relação com o Brexit. Desde então, milhares de europeus já deixaram o Reino Unido ou decidiram não mais voltar, causando uma queda na migração para 106 mil pessoas no ano fiscal encerrado em junho, um terço da média. Segundo o governo, é a maior queda em um período de 12 meses desde que o índice começou a ser computado, em 1964.

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Hospitais britânicos lutam para contratar médicos e enfermeiros. Universidades têm dificuldade em atrair professores e estudantes estrangeiros. Banqueiros procuram emprego na Alemanha e na França. O setor da construção advertiu, no mês passado, que a infraestrutura pode ter um forte retrocesso se o país não treinar um número suficiente de operários para preencher as vagas abertas com a queda na entrada de trabalhadores estrangeiros.

O “Brêxodo”, como vem sendo chamado o fenômeno, é particularmente agudo no setor agrícola, que depende de trabalhadores manuais vindos de países europeus pobres, como Romênia e Bulgária. Muitos desempregados na Europa, que procuram colocação em todos os cantos do continente, estão evitando o Reino Unido.

No caso de Mitchell, os sinais começaram no outono, após o referendo de junho de 2016 sobre o Brexit. Na primavera, o número de trabalhadores temporários começou a cair. “Eles simplesmente deixaram de vir”, disse. “Gente que trabalhou conosco por cinco ou seis anos começou a avisar que não voltaria. Em consequência, a carga de trabalho foi aumentando, pois não conseguimos mais substituir ou recrutar trabalhadores.”

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Em todo o Reino Unido, produtores de frutas como Mitchell já começam a se movimentar para tentar recrutar trabalhadores para a próxima primavera, quando a disputa por uma já reduzida força de trabalho atingirá o auge.

A agricultura britânica sofreu uma perda mensal de mão de obra de 13% a 29%, de maio a setembro. Segundo John Hardman, diretor da Hops Labour Solutions, agência de trabalhadores temporários, no pico, que vai de abril a setembro, a queda foi superior a 40% em comparação como o mesmo período do ano passado. Executivos e analistas preveem uma escassez ainda maior de mão de obra no próximo ano.

Fazendeiros britânicos estão fazendo de tudo para persuadir trabalhadores da Europa a trabalhar para eles: acenam com melhores condições de trabalho e salários – em alguns casos, pagam o equivalente a US$ 20 por hora, financiam aulas de inglês, dão acesso a quadras de tênis, distribuem ingressos de cinema. Mesmo assim, está difícil recrutar.

O Brexit foi centrado na imigração. Seus defensores queixavam-se de que trabalhadores estrangeiros, especialmente de países pobres da União Europeia, estavam roubando empregos de britânicos. Os debates foram dominados por temas explosivos, como raça, religião e tolerância. Apoiadores do Brexit argumentavam que permanecer na UE expunha o Reino Unido a uma nova onda de migração muçulmana, deixando o país mais vulnerável à ação de radicais islâmicos.

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O “Brêxodo” vem atrelado a uma queda do valor da libra em relação ao euro. Para migrantes da Bulgária e da Romênia, a moeda britânica mais fraca tornou as viagens ao Reino Unido menos interessantes: há empregos semelhantes mais perto de casa, na Alemanha e na Holanda. E, como outros países da UE também estão com dificuldade em contratar colhedores de fruta, a competição por trabalhadores jovens e saudáveis ficou mais intensa.

Segundo fazendeiros, os trabalhadores que ainda vão para o Reino Unido são hoje mais velhos e menos qualificados, e contratar britânicos é quase impossível, porque eles não se interessam por empregos considerados “inferiores”, segundo Hardman. Para Mitchell, o problema é urgente, não se limita mais à agricultura e alcança toda a economia britânica. “É como no Velho Oeste: só os fortes sobrevivem”, disse. / TRADUÇÃO DE ROBERTO MUNIZ

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