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Guerra de estrelas

Em terra de cegos quem tem um olho é rei, diz o provérbio. Num mundo árabe onde inúmeros golpes de Estado militares marcaram as últimas décadas e a democracia ainda luta para se consolidar, o Líbano continua a passar uma imagem de pátria das liberdades públicas, apesar das inúmeras deficiências do seu sistema político e dos graves abalos no campo da segurança que o país sofre periodicamente. O que não quer dizer que os militares libaneses estão resguardados contra a tentação presidencial, função tradicionalmente reservada aos cristãos maronitas. Dos 11 chefes de Estado eleitos desde a independência, em 1943, três – Foud Chéhab, Emile Lahoud e Michel Sleiman – exerciam, ao serem eleitos pelo Parlamento, as funções de comandante do Exército, posto que também é destinado aos maronitas. Dois outros comandantes tentaram a sorte, mas sem sucesso. O primeiro foi o general Emile Boustani que, acreditando que estaria assegurando um destino nacional, assinou, em 1970, os tristemente célebres acordos do Cairo com a Organização para Libertação da Palestina (OLP). Tais acordos deram à guerrilha palestina liberdade de ação quase total a partir do território libanês, o que não tardou a provocar uma série de invasões israelenses, antes de o país afundar numa longa guerra civil que durou 15 anos. Desde 1989, quando foi nomeado ministro interino após a expiração do mandato do presidente Bashir Gemayel, o sonho de se tornar presidente jamais abandonou o general Michel Aoun. Responsável pela supervisão da eleição de um novo chefe de Estado, ele se lançou numa dispendiosa guerra de libertação contra a ocupação síria e, em seguida, iniciou um combate também ruinoso contra a milícia das forças libanesas. O resultado foi o colapso das zonas cristãs e a consagração do domínio sírio sobre a totalidade do território libanês. Refugiado na França, Aoun só retornou ao Líbano em 2005, depois da retirada das tropas sírias, após o assassinato do ex-primeiro ministro Rafik Hariri. Numa reviravolta espetacular, ele não tardou em formar uma aliança com o Hezbollah, pró-Irã, e até visitar a Síria para se encontrar com o presidente Bashar Assad, unindo-se ao eixo sírio-iraniano. Apesar da mudança radical, Aoun ainda desfruta de grande popularidade entre os cristãos e de um bloco parlamentar importante. Aos 82 anos, ele continua obcecado pela presidência, que, por uma cruel injustiça, sempre lhe escapa. Ele ou ninguém, este é o lema dos partidários de Aoun, que se apresenta como defensor dos direitos espoliados dos cristãos. Há cerca de 15 meses, o Líbano está sem presidente, uma vez que a eleição do dignatário implica um quórum de dois terços dos 128 membros da Assembleia.  Nada menos que 27 convocações do Parlamento foram realizadas, sem resultado, pois os deputados fiéis ao general e seus aliados sistematicamente se abstêm de votar. O confronto se deslocou para dentro do gabinete de governo que, segundo a Constituição, assume provisoriamente as prerrogativas do chefe de Estado. Ora, esse governo atual está ameaçado de paralisia e os ministros do bloco de Aoun rejeitam qualquer iniciativa do Executivo enquanto não for estabelecido o processo com base no qual qualquer decisão é tomada, uma vez que a Constituição nada prevê a respeito. O bloqueio do Executivo pode custar muito caro para o país.  Prazos importantes vêm se acumulando: a partir do próximo mês, o governo não terá fundos para pagar os funcionários públicos. Além disto, o Líbano corre o risco de ver anulados empréstimos e donativos de centenas de milhões de dólares fornecidos pela comunidade internacional. Na semana passada, a situação explodiu por causa de um evento não menos sério, pois tratava-se de uma reunião de cúpula do aparato de segurança libanês num momento em que o país se defronta com perigosas repercussões da guerra na Síria. A hora da aposentadoria se aproximava para os três principais responsáveis militares: o comandante do Exército, Jean Kahwagi, o chefe do Estado Maior e o secretário geral do Conselho de Defesa. Por temor de um vazio, o ministro da Defesa, por simples decreto, manteve os três oficiais em seu posto por mais um ano.  A medida enfureceu Michel Aoun. Não contente em criticar o ministro, ele também atacou o general Kahwagi, acusando-o de não cumprir com suas responsabilidades e de ser cúmplice de um golpe de Estado. Além disso, ao chamado do velho general, manifestações ocorreram quarta-feira em Beirute e no interior do país.  Há duas razões para uma reação assim extrema. Há meses, Aoun, cujo genro, Gebran Bassil, é ministro do Exterior, exige a nomeação para o comando do Exército de seu outro genro, o general Chamel Roukoz, oficial de grande valor que comanda as unidades especiais de elite. Mas, particularmente, Aoun considera Kahwagi um sério rival na disputa pela presidência, em que há uma profusão de estrelas de general. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

Por Issa Goraieb
Atualização:

É COLUNISTA DO 'ESTADO' E DIRETOR DO JORNAL DE BEIRUTE L'ORIENT-LE JOU

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