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Hiperinflação faz venezuelano derreter moedas antigas e descartar as novas

Moedas voltaram aos bolsos dos venezuelanos interessados em vendê-las como sucata, apesar de um quilo não pagar nem um café; segundo projeção do FMI, inflação chegará este ano a 1.700% o que levou governo a imprimir cédulas de valor mais alto 

Por Felipe Corazza e Caracas
Atualização:

Com uma hiperinflação de 720% por ano em 2016 e previsão de 1.700% para este ano, a Venezuela transformou as moedas de 1 bolívar em peças de ficção, destinadas aos fundos de gavetas e a colecionadores. A desvalorização é tamanha que aquelas retiradas formalmente de circulação voltaram aos bolsos dos venezuelanos interessados em derretê-las para suprir necessidades básicas, enquanto as que ainda têm valor nominal são desprezadas.

Manifestante durante marcha em Caracas Foto: EFE/MIGUEL GUTI?RREZ

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Tendo perdido totalmente seu valor na reforma monetária feita por Hugo Chávez em 2007, as unidades de 1, 2 ou 5 bolívares cunhadas antes de 1990 são vendidas e compradas por quilo por terem sido forjadas inteiramente em níquel. Buscando cada forma de renda possível diante da derrocada da economia venezuelana, caçadores de moedas afixam anúncios nas paredes – mesmo em bairros mais pobres – procurando o metal que será revendido como sucata.

O quilo das moedas cunhadas antes de 1990 é comprado a 900 bolívares, segundo ofereceu um dos negociantes procurados pela reportagem. O valor não paga um café na lanchonete mantida há 20 anos na Avenida Solano López pelo sr. Puentes – que pede o uso deste nome fictício com medo de represálias. A inflação que, segundo projeção do FMI, deve chegar a 1.700% neste ano, devora o poder de compra dos venezuelanos e também as noites de sono de comerciantes. 

Puentes, que decora quase todo o lugar com cartazes de mensagens evangélicas de esperança e perseverança, diz ter reduzido sua margem de lucro “em cerca de 35% a 40%” nos últimos dois anos. Sem isso, diz, não teria conseguido manter a clientela e seria obrigado a fechar. “Não é possível acompanhar totalmente a inflação. Se fosse, teria de levar os preços a um nível impagável.” 

Recentemente, o governo anunciou a entrada em circulação de uma nova família de cédulas e moedas, com denominações que vão até 50 mil – a máxima anterior era de 100, obrigando cidadãos a carregarem pilhas de dinheiro apenas para as compras do dia a dia ou utilizarem quase exclusivamente os cartões de débito e crédito. 

Apesar disso, as máquinas para cobrança eletrônica ainda não estão em todos os estabelecimentos comerciais. “Com a demanda, os bancos não conseguem atender a todo mundo e mesmo assim cobram caro”, afirma Puentes. As taxas, dependendo da instituição, chegam a 4% dos valores de venda. Como alternativa, ele fez um acordo com o vizinho, dono de uma oficina de conserto de televisores, para cobrar de seus clientes utilizando a mesma máquina. O trato envolve o pagamento de 2% sobre as transações.

Há 16 anos vendendo autopeças em uma esquina próxima à Praça Venezuela, Jairo (que pede para manter o sobrenome em segredo) diz nunca ter passado por situação similar. “Não é só o preço que sobe, a mercadoria não aparece. Estamos pela primeira vez vendendo peças de segunda mão”, afirma.

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Tabelado. O avanço da inflação provocou outro efeito que pode parecer familiar aos brasileiros que viveram o fim da década de 80: a obsolescência precoce de cardápios impressos. Muitos restaurantes da capital venezuelanas desistiram do “luxo” e passaram a utilizar apenas lousas nas quais os preços são atualizados conforme o ritmo da inflação.

Outros estabelecimentos, que são obrigados pelas circunstâncias a terem menus impressos, adotaram uma tabela codificada, atribuindo preços como “C-34” a produtos. A esses cardápios é adicionada uma pequena tabela à parte, impressa com maior frequência, atualizando os valores das mercadorias.

Escalada. Economistas venezuelanos dizem que o país já vive um processo hiperinflacionário desde o fim de 2016, quando a alta dos preços superou 50% ao mês. O fato de não haver gatilho salarial no país – como no Brasil e outros países sul-americanos durante os anos 80 – traz um fenômeno diferente. Se por um lado a ausência do reajuste de salários não eleva ainda mais os preços, por outro o poder de compra do trabalhador é ainda mais afetado. “Não é exatamente uma hiperinflação como as dos anos 80, mas de certa forma é mais cruel, pois o poder de compra do venezuelano é muito mais castigado sem o gatilho”, disse o economista Orlando Ochoa. 

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