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É colunista do 'Estadão' e analista de assuntos internacionais. Escreve uma vez por semana.

Opinião|Impacto externo

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O afastamento da presidente Dilma Rousseff põe fim a um ciclo de 13 anos de ruptura do Brasil com a linha mestra de sua política externa – o respeito à soberania e ao princípio da não intervenção. Essa ruptura ocorreu nas relações com os vizinhos sul-americanos. O motivo, no entanto, não foram interesses de Estado, como classicamente ocorre com potências que interferem nos assuntos de outros países. Nos governos petistas, a política externa foi contaminada pela ideologia e passou a ser exercida segundo identificações políticas. Em outras palavras, saiu da esfera do Estado, cujos interesses são permanentes, ditados pela geografia, a história e a economia, e ingressou na trilha tortuosa do governo e dos partidos.

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O fundamento psicológico dessa ruptura é fácil de observar: o ex-presidente Lula usou a política externa para compensar o trauma causado no PT e na esquerda por sua adesão à política econômica liberal antes execrada por eles. Ao apoiar o populismo de esquerda na Venezuela, Bolívia e Argentina, Lula procurou atenuar o sentimento de “traição” dos princípios que antes defendera – e manter seu poder de sedução sobre suas bases tradicionais.

Lula e Dilma apoiaram abertamente as reeleições de Hugo Chávez na Venezuela, Evo Morales na Bolívia e Cristina Kirchner na Argentina. Lula chegou ao ponto de participar de um ato eleitoreiro de Chávez, a inauguração de uma ponte sobre o Rio Orinoco, na fronteira entre os dois países, no dia 13 de novembro de 2006. 

Recém-reeleito, Lula explicitou o seu desejo de que Chávez também se reelegesse, no pleito que ocorreria dentro de 20 dias: “Sei que aqui, como no Brasil, somos vítimas de pessoas que governaram o país durante séculos e séculos, e não aceitam que alguém que queira cuidar do povo e seja diferente governe. Eu não tenho dúvida que aqui na Venezuela havia muitos e muitos anos que não tinha um governo que se preocupasse com a gente pobre como tu tens te preocupado.” 

O Brasil passou a ser tratado como um partido, que participava de uma frente de esquerda supranacional. A ponto de os interesses econômicos brasileiros serem atropelados para sedimentar essa aliança. Isso ficou mais visível no episódio da nacionalização das refinarias e campos de gás da Petrobrás na Bolívia, em 2006. A estatal havia investido US$ 1,5 bilhão nas duas refinarias e outros US$ 2 bilhões no gasoduto. Mesmo assim, no ano seguinte, para apaziguar Morales, Lula aceitou aumentar de US$ 1,09 para US$ 4,20 o preço pago pelo Brasil por milhão de BTUs (unidade térmica britânica). 

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Para um país mergulhado em seus problemas e com uma democracia ainda em formação, pode parecer sutil a diferença entre Estado e governo, e um problema menor a política externa servir de consolo para uma militância órfã. Mas não é assim. Quando um governo subordina a política externa a interesses partidários, está dando um passo largo na direção do aparelhamento do Estado. Tratava-se, portanto, do primeiro sinal daquilo que se percebe em sua inteireza hoje: o quanto o Estado brasileiro – as agências reguladoras, os bancos e as empresas estatais – foi capturado por um partido.

“O ‘socialismo do século 21’ não teria acontecido só pelo carisma de Chávez, se não fosse pelo talão de cheques muito poderoso da PDVSA (estatal do petróleo venezuelano) e o apoio de Lula, se o Brasil não tivesse se calado e apoiado o projeto, demonstrando a cada dia que eles eram parceiros lícitos”, disse o ex-presidente boliviano Jorge Quiroga, em uma palestra na Fundação iFHC.

Sob a liderança brasileira, o Mercosul suspendeu o Paraguai, em 2012, por ter aprovado o impeachment do presidente Fernando Lugo, num processo que havia seguido a Constituição paraguaia à risca. Com isso, o Brasil atendeu a um interesse da Venezuela, cujo ingresso no bloco estava impedido pela falta do referendo do Senado paraguaio. 

A punição ao Paraguai e a entrada da Venezuela foram emblemáticas da subordinação da legalidade regional aos interesses partidários dos governos de turno. A contaminação chegava, assim, aos arranjos regionais. Foi o que possibilitou que o secretário-geral da OEA, Luis Almagro, acatasse a tese de Dilma de que é vítima de golpe. Almagro, que foi chanceler do ex-presidente uruguaio José Mujica, de esquerda, encaminhou à Corte Interamericana de Direitos Humanos uma consulta sobre se esses direitos estão sendo violados no Brasil pelo impeachment. 

E há a Unasul, criada para atender as ambições de liderança regional de Chávez. Seu secretário-geral, o colombiano Ernesto Samper, disse que não há provas contra Dilma, que o impeachment é “preocupante para a região”, que “o Brasil está na UTI da Unasul”, provocando vigorosa reação do Itamaraty, já sob o novo chanceler, José Serra. Venezuela, Bolívia, Equador, Cuba e Nicarágua manifestaram apoio a Dilma. O Brasil prova do próprio veneno. Terá de empregar sua liderança agora para despolitizar a OEA e o Mercosul e deixar que a Unasul mergulhe na irrelevância. 

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Opinião por Lourival Sant'Anna

É colunista do 'Estadão' e analista de assuntos internacionais

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