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Impeachment, legalidade e moralidade

Nos EUA, desde 1787, o impeachment do presidente só foi votado duas vezes

Por Adriana Carranca
Atualização:

O mecanismo de impeachment surgiu no século 14 na Grã-Bretanha como meio de exercer controle sobre a monarquia, ao conferir a parlamentares a capacidade de destituir ministros apontados pelo rei e outros favorecidos. Eram homens fora do alcance da lei, do escrutínio público e do julgamento das urnas.

A medida foi usada por séculos para garantir um governo responsável, mas, principalmente, corrigir o desequilíbrio de poder entre o Parlamento, representante do povo, e os mandatários do rei.

Presidente Clinton e Monica Lewinsky, então estagiária na Casa Branca Foto: NYT

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Esse modelo foi adaptado ao presidencialismo nos EUA e adotado na Constituição de 1787. Dele herdamos o processo em curso no Brasil. A experiência americana pode, portanto, nos servir como parâmetro.

Em mais de dois séculos, o processo de impeachment contra presidentes só chegou à votação duas vezes. Em 1868, do presidente Andrew Johnson e, em 1998, do presidente Bill Clinton. Ambos foram absolvidos no Senado. (Outro caso famoso, do presidente Richard Nixon, em 1974, não chegou a ser votado – Nixon renunciou antes disso.)

Isso se deve, em parte, a uma série de controvérsias na concepção do impeachment. Uma delas é sobre a definição dos crimes que estariam sujeitos à medida. O delito de “má administração”, por exemplo, foi retirado do texto por ser considerado “vago” demais. O termo foi substituído por “altos crimes e contravenções” com a intenção de restringir os casos de um processo tão extremo e traumático que os autores do texto esperavam que “nunca fosse adotado”.

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No entendimento dos fundadores dos EUA, este não deveria ser o mecanismo principal de responsabilização do Executivo – e, sim, as urnas. Um dos argumentos dos que eram contrários à inclusão da medida no texto da Constituição era que o comportamento do presidente já estava sujeito ao julgamento periódico dos eleitores e não deveria ser submetido a outro, intermediário.

Mesmo Thomas Jefferson, conhecido por ser contrário a um governo central forte, temia que o impeachment pudesse ser usado para “anular” a vontade do eleitorado.

Outra preocupação era sobre falhas que poderiam tornar o processo não democrático. Quando se reuniram para redigir a Carta, em 1787, os delegados cogitaram que a Suprema Corte julgasse casos de impeachment. Mas a ideia central, inspirada nos britânicos, era dar contrapeso a um poder absoluto – no caso do presidencialismo, distribuindo-o entre Legislativo, Executivo e Judiciário.

Outro motivo de entregar o processo ao Congresso era o fato de seus integrantes, ao contrário dos juízes, serem eleitos diretamente. Assim, acreditavam os entusiastas da medida, o povo estaria protegido dos abusos e da usurpação de poder.

Além disso, “atribuir a um (Câmara) o direito de acusar e a outro (Senado) o direito de julgar” evitaria “os riscos de perseguição”, nas palavras de Alexander Hamilton, em O Federalista, conjunto de artigos pela ratificação da Constituição – a menos que as duas Casas fossem dominadas por inimigos do presidente.

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Apesar dos problemas, Hamilton defendia que o Senado era “suficientemente digno e independente” para julgar o processo com a “a imparcialidade necessária”, por ter mandato mais longo e, assim, estar menos sujeito a pressões políticas eleitoreiras. Quando foi sancionada a Carta, no entanto, não havia partidos políticos e o risco de o processo ser distorcido pelo partidarismo era nulo.

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Críticos do impeachment também argumentavam que dar ao legislador o poder de punir o Executivo “significaria destruir a sua independência”, como escreveu Charles Pinckney, signatário da Constituição. A questão permanece sem consenso até hoje.

“Ninguém pode ignorar os riscos rondando o processo de impeachment. Não há como eliminar todos os elementos da política partidária e o processo é passível de sérios abusos”, escreveu Raoul Berger em Impeachment: The Constitutional Problems, um dos tratados sobre a medida.

Ainda assim, ele defendia que os perigos inerentes ao impeachment presidencial não eram suficientes para desacreditar o processo, afinal o poder estaria nas mãos do Senado e ele acreditava ser remota a possibilidade de um presidente eleito pelo voto popular não conseguir evitar um esforço ilegítimo de removê-lo do poder. A menos que tivéssemos perdido toda a moral política.

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