Italianos votam o seu futuro e o da Europa

Referendo constitucional hoje pode derrubar premiê e agravar crise no continente

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Por ROMA
Atualização:

Nas ruas de Roma, eleitores chegam ao referendo de hoje em clima beligerante. A Itália, que teve 60 chefes de governo em 68 anos, vota sua mais ampla reforma constitucional desde 1948 com a meta de estancar essa volatilidade. Mas muitos deixam claro que irão contra o premiê e mentor da consulta popular, Matteo Renzi, na expectativa de provocar eleições antecipadas. 

“Por que não Grillo ou até Salvini?”, diz o aposentado Giuseppe Morelli, referindo-se a Beppe Grillo, líder do populista Movimento 5 Estrelas (M5S), e a Matteo Salvini, do rival Liga Norte (extrema direita), para quem o apoio ao “sim” é apoiar “banqueiros, o governo alemão e um monte de burocratas de Bruxelas”.

Primeiro-ministro da Itália, Matteo Renzi, lamenta Brexit Foto: EFE/Angelo Carconi

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Mesmo que a reforma não tenha qualquer relação com a União Europeia, outros ligam o voto “não” à rejeição ao bloco. “Todos esses órgãos de finanças que dizem que teremos uma crise se o ‘não’ vencer. Para mim isso é uma farsa. Eu voto ‘não’ até pela soberania do povo italiano”, diz o comerciante Enrico Spina, de 49 anos. 

Em meio a uma onda populista global, o temor de dirigentes e investidores na Europa é que Renzi não resista a uma derrota e abra a perspectiva de turbulências políticas e econômicas na Itália e na UE. Sondagens privadas indicam a provável vitória do “não” - cuja campanha foi apoiada por populistas como Grillo, pela extrema direita e por intelectuais de esquerda.

Menos de seis meses depois do plebiscito sobre o Brexit, que levará o Reino Unido a deixar a UE, e um mês após a vitória de Donald Trump nos EUA, a votação tornou-se outro exemplo de eleição com efeitos imprevisíveis.

De acordo com analistas, um risco do referendo é que Grillo e o M5S encontrem na queda de Renzi a oportunidade para antecipar eleições, vencer e implementar seu programa de rejeição ao euro e à União Europeia. A conquista há seis meses da prefeitura de Roma pela advogada Virginia Raggi, de 38 anos, mostrou que o grupo tem chance. 

O Movimento 5 Estrelas é descrito como de esquerda, mas a mensagem anticorrupção e contra o establishment de Grillo tem potencial para mudar drasticamente a política italiana, com um efeito similar ao de Trump nos EUA. Justamente de olho em beneficiar-se de um fenômeno semelhante, o próprio Grillo recebeu bem a vitória do republicano. O resultado da votação poderia ser visto como uma aprovação a Grillo, que defendeu um referendo para deixar o euro, embora não tenha se referido a uma saída da UE. 

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Outro possível alvo de uma derrota de Renzi é o sistema bancário. A saúde financeira de várias instituições italianas é vista com lupa pelo mercado. O Monte dei Paschi di Siena, fundado em 1472, por exemplo, precisa de aumento de capital. De acordo com o New York Times, poucos investidores se atreveriam a entrar num país com potencial instabilidade. 

O pacote de mudanças em votação hoje foi aprovado pelo Parlamento, mas precisa passar pelo voto popular e prevê a alteração de mais de 40 artigos da Constituição. O mais importante deles diz respeito à formação e às atribuições do Senado, a câmara alta que perderia força política com a reforma. Pelo texto, o número de senadores seria reduzido de 315 para 100 e sua escolha seria feita em nível regional. A Casa também não teria mais a capacidade de eleger ou derrubar um primeiro-ministro.

Como vem ocorrendo em diferentes países, a campanha acabou marcada por simplificações, notícias falsas e estratégias de marketing político que transformaram a votação em uma espécie de plebiscito a favor ou contra Renzi. “A reforma é muito, muito difícil de comunicar, de explicar a um cidadão comum, que não tem noções de direito e de ciência política”, avalia Leonardo Morlino, cientista político da Università Luiss, de Roma.

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A perspectiva de uma derrota coloca o futuro de Renzi, de 41 anos, em jogo, já que o premiê chegou a condicionar sua permanência no cargo à vitória hoje - antes de voltar atrás e deixar sua situação em aberto. Na sexta-feira, último dia da campanha, Renzi e Grillo realizaram comícios em Florença e Turin, respectivamente. “Pense no futuro e no futuro de seus filhos”, afirmou Renzi em um apelo para tentar mobilizar eleitores pelo “sim”. O primeiro-ministro disse ainda que, em caso de vitória do “sim”, “a Itália será o mais forte país da Europa”.

À noite, até o último momento de campanha, o premiê compareceu a debates e programas de TV, reforçando a personalização do referendo. “Renzi não é simpático, mas tem uma enorme capacidade de comunicação. E hoje a política é comunicação”, explica Luigi Buonanato, decano cientista político da Universidade de Turim. “Renzi pensou que, ao dramatizar o referendo, ele caminharia diretamente para novas eleições e superaria o Movimento 5 Estrelas, que tem uma audiência popular enorme. De fato, ele é a única barreira ao populismo do M5S.”