'Lamento não ter podido evitar a guerra no Iraque'

Ex-diretor-geral da Opaq lembra de sua destituição em 2002 e diz que armas da Síria poderiam ter sido destruídas há 10 anos

PUBLICIDADE

Por ANDREI NETTO , CORRESPONDENTE e PARIS
Atualização:

Um diplomata brasileiro, o atual embaixador na França, José Maurício Bustani, foi um dos precursores dos mais de 15 anos de trabalho realizado pela Organização para a Proibição de Armas Químicas (Opaq), vencedora do prêmio Nobel da Paz de 2013. Em 1997, Bustani foi o primeiro diretor-geral da organização, quando quase dobrou o número de países signatários, criando também um código de conduta para os inspetores de armas químicas.

PUBLICIDADE

Em abril de 2002, Bustani foi derrubado do cargo por pressões exercidas pelo governo de George W. Bush, dos EUA, que se opunham à sua iniciativa de chegar a um acordo para a realização de inspeções no Iraque de Saddam Hussein e na Líbia de Muamar Kadafi.

Ao inspecionar o país, a Opaq poderia constatar a ausência de armas químicas, abalando os argumentos americanos para a ofensiva militar executada em 2003. Bustani tem a exata medida das pressões políticas exercidas sobre o trabalho dos inspetores de armas químicas, mas considera o Nobel justo e, mais do que isso, atrasado. Em entrevista ao Estado, ele falou sobre os seguintes temas.

Méritos da Opaq

"Finalmente se reconheceu que há 15 anos existe uma organização trabalhando silenciosamente e muito bem, uma peça fundamental no lançamento de um processo de paz para resolver o conflito na Síria. O Nobel está apoiando o multilateralismo, o diálogo - e não uma ação militar unilateral -, uma convenção e uma organização internacional não discriminatórias."

Peso das inspeções na Síria

"Obviamente, o Nobel não foi concedido pelo trabalho que está fazendo agora (na Síria), pois apenas começou. Essa organização, que já tem perto de 15 anos, representa a primeira convenção na área do desarmamento que não discrimina. O Tratado de Não Proliferação Nucleares (TNP), em seu Artigo 6, dá um tratamento diferente para as potências nucleares. É a sua grande vulnerabilidade. A Opaq não tem nada disso."

Publicidade

Código de conduta

"Tínhamos de dizer aos 211 inspetores que o sucesso da organização era que tratássemos todos os países de forma igual, que tivessem um código de ética restrito. Cada um trazia o resultado da pesquisa e ninguém podia passar para o outro o resultado de sua tarefa. A única pessoa que tinha acesso à inspeção como um todo era o inspetor-geral, que mostrava o que tinha de mostrar aos Estados-membros."

Pressões políticas sobre a Opaq

"Isso depende de como ela é dirigida. A organização tem o instrumento que permite que o diretor-geral, se tiver um perfil forte, não se deixe manipular pelas pressões políticas. Mas eu realmente perdi contato com a organização. Estou falando do meu período. Nele, posso dizer que não houve sujeição a pressão política. Tanto não houve que eu tive de sair."

PUBLICIDADE

Crise

Quando eu entrei, eram 87 países, o mínimo para começar a convenção. Outros países pensaram: 'Essa organização não vai me usar politicamente para atender seus interesses e fazer sacanagem'. Aí, pouco a pouco, o Irã entrou, o Sudão entrou, muita gente entrou."

"Quando eu saí, eram 158 países. A imagem era de que a Opaq não trapaceava, como a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) fazia, como ocorreu no Iraque. Isso me deu a credibilidade para insistir e conseguir a adesão dos países. Foi o que aconteceu com a Líbia e o Iraque naquele momento. Depois de dois anos de trabalho com eles, consegui. Era conveniente para o Iraque, porque eles sabiam que estavam sobre pressão. Deixando-se inspecionar pela Opaq, ficava óbvio que não tinham nada."

Publicidade

"Mas ,então, os americanos interromperam o processo. Se tivéssemos feito as inspeções, ficaria claro que eles não tinham mais nada e não haveria justificativa para a guerra. O Iraque não estaria no estado que está hoje. Se tivéssemos conseguido fazer as inspeções no Iraque, teríamos podido fazer na Síria e no Egito, por exemplo. O desarmamento da Síria já poderia ter acontecido. Perdemos 10 anos."

Demissão em 2002

Loading...Loading...
Loading...Loading...
Loading...Loading...

"Fui punido duplamente pelos americanos e pelo governo brasileiro de então. Não cometi nenhum erro, pelo contrário. Até o fim do governo de Bill Clinton - com quem eu nem tinha uma relação muito fácil -, havia respeito quanto à maneira como eu tratava os EUA. Quando o (secretário de Estado) Colin Powell assumiu, ele mandou uma carta, logo no seu primeiro mês, elogiando o meu trabalho e confirmando o apoio dos americanos. A coisa degringolou em seguida, mesmo para ele próprio, porque ele fez aquele papelão na ONU. Tudo começou com o Dick Cheney (então vice-presidente americano) e com o John Bolton (encarregado americano do desarmamento). Eles desenvolveram a ideia do ataque ao Iraque."

"Quando eu disse que teríamos proximamente a entrega das declarações da Líbia e do Iraque (aderindo ao tratado), o embaixador americano me disse: 'Quem autorizou vocês a fazer isso?' Eu respondi: 'Ninguém me autorizou. Faz parte do meu mandato. Estou comunicando que daqui a 30 dias vamos começar a inspecionar'. Aí, começou a campanha para que eu saísse. Mais adiante, eu fui à Organização Internacional do Trabalho (OIT), entrei com uma ação e ganhei. Tudo foi ilegal: a conferência e a minha demissão. Eu queria que a OIT reconhecesse a ilegalidade de todo o processo."

Falta de apoio do Brasil

"Na hora que eu precisei do apoio do Brasil, fiquei perplexo. Fui abandonado. O que eu precisava do Brasil era apenas que o país pedisse aos países amigos que me apoiassem, para que eu não fosse expulso daquela maneira. Como não houve essa gestão do Brasil, o que aconteceu? Na Europa, os ocidentais todos, exceto a França, votaram para me derrubar. Os outros se abstiveram. Como o Brasil não me defendeu, acharam que tinha alguma coisa contra mim. Então, tive de sair. Passei um ano desempregado. O presidente Lula me reaproveitou muito bem e não posso me queixar da minha carreira."

Uso de armas na Síria

Publicidade

"No início (em dezembro de 2012), eu tinha dúvidas. Hoje, o que posso dizer é que, se os inspetores da Opaq disseram que havia gás sarin, é porque, provavelmente, havia. As circunstâncias das inspeções devem ter sido obviamente muito complicadas para eles identificarem a origem. Nem é a função deles. Se o mandato da ONU tivesse sido estendido, eles poderiam ter investigado. Mas acho até curioso que o mandato da ONU não tenha pedido a investigação. A quem interessa não saber ou não identificar os responsáveis?"

Peso das inspeções na guerra civil

"A iniciativa na Síria é muito importante. Significa uma aposta no processo de paz, que pode levar a uma solução para a região. É importante que, em uma área-chave, ela tenha ficado por aquilo que a comunidade internacional vai fazer. Temos de respeitar o processo de paz que Rússia e EUA lançaram nessa conferência de paz de Genebra."

Relação Iraque-Síria

"Lamento que naquele processo internacional não tenha podido terminar a tarefa e evitar que houvesse a guerra no Iraque, nem desenvolver um processo maior que estaria poupando a comunidade internacional daquilo que aconteceu na Síria. Não importa quem jogou aquele ácido em Damasco, mas não teria acontecido."

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.