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Lixo que é bomba-relógio

Um Estado pode muito bem sucumbir a uma revolução ou uma guerra perdida. Mas seria algo concebível ele acabar afogado sob uma maré de lixo doméstico? É o que um número cada vez maior de libaneses teme. O que era uma lamentável falha do serviço de coleta de lixo tornou-se uma verdadeira bomba-relógio ameaçando não só as últimas estruturas ainda de pé do Estado libanês, como também a estabilidade e a segurança pública.

Por ISSA GORAIEB
Atualização:

Em 17 de julho expirou o contrato firmado havia 20 anos com a empresa Sukleen, encarregada da coleta e tratamento do lixo em Beirute e no Monte Líbano. Mas não foi prevista nenhuma medida para uma substituição pelo governo, praticamente paralisado. O serviço não foi retomado pela recusa de uma parte dos ministros, representando o Hezbollah e seu aliado cristão, o bloco de Michel Aoun, a qualquer iniciativa governamental na ausência de um mecanismo sistematizando as tomadas de decisão do Executivo – que assume as prerrogativas do presidente da República que o Parlamento não consegue eleger há 15 meses.

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Com a suspensão das operações da empresa Sukleen, montanhas de detritos não tardaram a invadir as ruas de Beirute e de outras cidades. A invasão pestilenta ofereceu um espetáculo deprimente de regiões defendendo tenazmente sua modesta integridade territorial face às tentativas desesperadas dos responsáveis para criar novos aterros públicos. Depois de barrar a entrada de lixo de outros, algumas localidades chegaram a despachar clandestinamente, à noite, seu lixo para o vizinho, a bordo de caminhões fretados.

Mas foi no fim de semana passado que a pequena guerra do lixo chegou à rua e isso por convocação de várias associações civis – a mais importante levando o nome de “Vous puez! (vocês fedem!)”. Uma exclamação que se endereça a uma classe política considerada incompetente e corrupta. 

Inúmeros cidadãos de todos os grupos sociais e religiosos se reuniram no centro da cidade de Beirute para uma manifestação pacífica, mas agitadores se misturaram à multidão, saqueando, incendiando e chegando a lançar coquetéis molotov contra a polícia que, com canhões d’água e gás lacrimogêneo, impedia os manifestantes de invadir a presidência do Conselho.

Num país onde a energia elétrica continua racionada 20 anos depois da guerra e onde os escândalos financeiros são inúmeros, é a primeira vez, após muito tempo, que a sociedade civil libanesa se faz ouvir com um tal vigor para exprimir seu desprezo por um establishment político imobilizado há décadas na sua mediocridade. Claro, vários partidos políticos e líderes tradicionais procuraram (e continuarão procurando) usar em seu benefício essa cólera popular. Mas é evidente que alguma coisa se rompeu para sempre entre uma minoria relevante de cidadãos e as clássicas instâncias que dominam a vida pública.

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Um dia após ter confiado a coleta de lixo, por via de adjudicação, a seis empresas, o conselho de ministros teve de anular os acordos pela cólera popular provocada pela notícia de que essas seis companhias desfrutavam da proteção de personagens políticos de diversas tendências que dividiram o bolo e tiveram autorização para cobrar tarifas abusivas. 

Então, o governo propôs à Província de Akkar um programa de desenvolvimento de US$ 100 milhões se aceitasse receber um carregamento gigante de lixo. A oferta foi rejeitada pelos habitantes. Seu slogan? “Akkar não é lata de lixo.” / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

*Issa Goraieb é colunista do 'Estado' e diretor do jornal de Beirute 'L'orient-leJour'

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