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Mulher enigmática

Merkel não revela sua proposta de campanha, diz que todos a conhecem

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Por Redação
Atualização:

Ela tem os ares de uma valorosa senhora de cabelos loiros e uma franja definida sobre a fronte, bem inteligente. E como nós já a conhecemos há 12 anos, e ela está no centro do mecanismo europeu, deveríamos começar a conhecê-la. Mas ela continua sendo um ponto de interrogação.

Mal sabemos que tem um marido e nas noites de sexta-feira faz suas compras de supermercado. Ela se mostra reservada, mas amável com as atendentes. Sua força, ou sua astúcia, é passar a ideia de que, ao contrário, ela é a mulher mais simples, mais acessível do mundo.

Chanceler alemã, Angela Merkel, ainda resiste ao desgaste do poder Foto: Jens Butner/AFP

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Na França, um candidato à presidência está condenado a anunciar a seus eleitores o que vai fazer, qual a porcentagem de elevação ou de redução dos impostos, se vai favorecer o cigarro ou o cachimbo, a cor amarela ou a azul. Para Merkel, Pfttt! Seu programa é ela. “Vocês me conhecem.”

Ou precisamente, eles não a conhecem, porque ninguém a conhece. Exteriormente é uma pessoa sem fantasia, um pouco monótona, fiel a alguns princípios tranquilizadores e incapaz de adotar uma nova opinião ou posição. Mas interiormente é uma pessoa secreta, difícil de se conhecer, que pode desbaratar tudo com uma naturalidade desconcertante.

Três exemplos recentes dessa maleabilidade: ela sempre declarou seu apego à energia nuclear, mas a explosão da central nuclear de Fukushima a abalou. De um dia para outro, decide que não queria mais saber da energia nuclear. Sempre se opôs ao casamento gay e de repente, em junho, sem anúncio prévio, declara que abriu um debate sobre a questão. Será que ela mudou de filosofia ou obedeceu ao desejo sussurrado pela maioria dos alemães? Quem saberá jamais?

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O terceiro caso é mais impressionante. Em 2015, a Europa está envolvida no fluxo de migrantes. Jornalistas, escritores apresentam quadros horripilantes, anunciando o retorno das “grandes invasões da Idade Média” e enxergam uma Europa em breve pisoteada pelas hordas de Gengis Khan.

Todos os países europeus estão de prontidão contra o surgimento dos desabrigados. Alguns, como a França, hipocritamente, os outros francamente como a Hungria, que se envelopa em arame farpado. E então Merkel, sem consultar ninguém e com uma voz calma, anuncia que abrirá suas fronteiras para um milhão de migrantes.

O estranho é que para esses vira-casacas, essas mudanças repentinas acabam funcionando. Ela maneja uma arma eficaz. Essa arma é o silêncio. Na França, os chefes falam sem parar. Sarkozy falou. Hollande falou. Macron fala. Merkel nada diz ou quando muito, distribui trivialidades. Em reuniões internacionais é até divertido: todos agitados, falando, gritando. Merkel é um bloco de silêncio. E então, depois que todos apresentaram seus propósitos, Merkel fala brevemente. E, geralmente, prevalece.

O mistério Merkel se adensa à medida que o iluminamos. Os detetives buscam, portanto, sobre qual alicerce sólido e intocável se apoia essa aparente desenvoltura, essa versatilidade.

Um dos melhores biógrafos de Merkel, Philip Plickert, refere-se à infância na Alemanha Oriental, a terrível RDA e ao pai, pastor protestante em Templin, Brandemburgo. Os protestantes são os campeões da discrição e da disciplina interior. Ou seja, nessa RDA comunista, a muito jovem recorreu a uma disciplina interior para conservar sua liberdade ao abrigo da terrível Stasi.

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Essa infância em um terreno intolerante, comunista, trouxe um outro ensinamento a Merkel: ele viu com os próprios olhos a vaidade, a estupidez, o perigo das “ideologias”. As grandes elaborações sobre o senso de história, sobre sua decadência ou sobre o progresso da humanidade, tudo aquilo que encanta os “intelectuais”, com Merkel, não funcionam de nenhuma forma.

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Pragmática, de um extremo ao outro, um “programa” de pouco lhe serve. Nenhuma filosofia atrapalha ou pesa sobre os passos. Há uma outra especialidade de Merkel que sem dúvida explica seu comportamento. Ela é “religiosa”. Jamais fala disso e não parece ser muito influenciada pelas recomendações da Igreja. Para ela, a religião é um assunto privado. O que ela manteve do protestantismo é antes de mais nada uma mensagem de “liberdade”. 

Podemos acrescentar algumas cores à silhueta muito clara, muito transparente, da senhora Merkel, mesmo que essa pessoa poderosa preserve uma parte de seus segredos. Livre como o ar em relação às ideologias, desde que não eliminemos as grandes lições das religiões, da moral e da liberdade.

Quanto a mim, é assim que interpreto essa extraordinária “força política”, desde que em 2015 ela anunciou, para surpresa ou cólera de todos, que precisaria abrir seu país aos excluídos, aos migrantes. / TRADUÇÃO DE CLAUDIA BOZZO 

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