Na Copa de 2022 no Catar, álcool nos estádios é assunto sensível

Organizadores e cidadãos dizem que pressão da Fifa pela venda de bebidas enfrentará forte resistência no país muçulmano.

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Por Júlia Dias Carneiro
Atualização:

Enquanto no Brasil a decisão sobre ter ou não álcool nos estádios continua sendo empurrada para a frente, no Catar o debate começou dez anos antes da Copa. No primeiro país muçulmano a sediar o mundial, entretanto, qualquer pressão da Fifa para mudar as regras locais promete encontrar resistência bem maior. Em um dos principais mercados de Doha, Souq Waqif, a noite fervilha numa quinta-feira. Na rua principal, os restaurantes têm mesinhas do lado de fora, lotadas de catarianos, moradores estrangeiros e turistas. Eles bebem chá, limonada com hortelã, refrigerante ou talvez um milkshake. Muitos fumam shisha (como os catarianos chamam o narguilé, uma espécie de cachimbo de água). Mas não há bebidas alcoólicas à vista. Nem à vista, nem à venda. Em Doha, o consumo de álcool em lugares públicos é proibido, e apenas alguns hotéis cinco estrelas e restaurantes servem bebidas. Não há venda em supermercados, apenas em depósitos de bebida, e só pode comprar quem tem uma licença especial concedida por um empregador catariano. Na candidatura para sediar o mundial, conquistada em 2010, o Catar se comprometeu a ter áreas específicas onde o consumo de álcool será permitido. Nos estádios, porém, a questão é mais complexa. No último mês de março, enquanto no Brasil a discussão sobre ter ou não ter bebidas alcoólicas nos estádios seguia a pleno vapor, a questão chegou a Doha. Durante uma conferência sobre segurança em megaeventos esportivos, o secretário-geral do comitê organizador de Catar 2022, Hassan Al-Thawadi, reiterou o compromisso de permitir álcool em locais especiais durante o evento, mas disse que o plano não se estende aos estádios - pelo menos por enquanto. "Para mim, pessoalmente, não vejo razão para que haja (bebida) nos estádios, mas é algo que estamos discutindo com a Fifa", afirmou Al-Thawadi. De acordo com ele, a "extensão" do consumo de bebidas e "onde exatamente" poderá ocorrer são questões que ainda estão sendo analisadas. Leis, religião e costumes A pressão da Fifa para que o álcool seja permitido nos estádios visa a permitir a presença de um dos grandes patrocinadores da Copa nas partidas, a cerveja Budweiser, do grupo Anheuser-Busch InBev. No Brasil, assim como na Rússia - que sediará a Copa de 2018 - a venda de álcool em estádios é proibida por leis nacionais, criadas para evitar casos de violência entre torcedores e ajudar a controlar as multidões em jogos. A discussão sobre a liberação ou não das bebidas na Copa de 2014 era um dos pontos de conflito da Lei Geral da Copa. Após sucessivos adiamentos na votação, a versão aprovada na última quarta-feira pela Câmara dos Deputados ainda não atendeu explicitamente à demanda da federação. A decisão foi passada adiante e deixada a cargo dos 12 estados que sediarão o mundial, que deverão negociar diretamente com a Fifa. Se no Brasil a ideia de abrir uma exceção encontrou resistência em defesa da legislação nacional, no Catar a proposta atiça ainda mais a defesa da cultura e da religião locais. O país é um emirado, governado pela mesma família real há dois séculos, e tem sua legislação baseada na sharia, o sistema de leis islâmico. Em uma consulta com alguns frequentadores do Souq Waqif, a BBC Brasil ouviu aceitação à proposta de uma área especial com venda de bebida para torcedores, mas "nãos" veementes à ideia de ter álcool nos estádios em 2022. "A nossa opinião é que ter álcool nos estádios é inconcebível. Você está em um país muçulmano, tem que respeitar as regras muçulmanas", disse o catariano Shabbir Ibrahim, de 32 anos, ao lado de um grupo de amigos. Dono de uma loja de suvenires no mercado, Ibrahim vende shishas, caixas de madeira trabalhadas com mosaico e conjuntos de saleiro e pimenteiro com bonecos vestindo os trajes tradicionais locais - as mulheres cobertas de preto, os homens cobertos de branco. Para ele, o álcool nos estádios seria um insulto. "O álcool não é permitido na nossa religião. É uma questão de respeito pelas outras pessoas, pelas nossas famílias. Não é permitido nas ruas, em lugares públicos. As pessoas que vêm de fora podem beber em hotéis", diz. Nascido na Síria, o engenheiro civil Asrad Baker, de 37 anos, vive em Doha há seis anos e é da mesma opinião. Ele acha que bebidas não podem ser vendidas abertamente na cidade durante a Copa ("Aqui é um lugar de família", diz sobre o mercado), e muito menos nos estádios. "Eu não aceito essa ideia. Pode causar problemas, brigas", considera Baker, associando o álcool à violência. Ele bebia uma taça de milkshake de creme com calda vermelha numa das mesinhas ao ar livre nos restaurantes do Souq Waqif. Controle O consumo de álcool em lugares públicos gerou uma polêmica recente em Doha. The Pearl, um novo empreendimento comercial e residencial construído na cidade, conquistara uma licença para ter bebidas em seus restaurantes e bares, ampliando a oferta para além dos hotéis cinco estrelas da cidade. Mas em dezembro, a venda foi banida por pressão de grupos mais conservadores. "O pessoal estava fazendo a festa, com mesinha na calçada. Virou Copacabana. Aí houve um movimento de não-aceitação na sociedade e proibiram", conta o brasileiro Roberto Diniz, que mora em Doha há quase quatro anos. "A sociedade catari representa menos de 20% da população, mas eles têm que ter controle do país", diz. Os estrangeiros são maioria no Catar, país de 1,8 milhão de habitantes dos quais cerca de 300 mil são cataris. Paulistano de Jacareí e superintendente de um banco islâmico em Doha, Diniz diz não conseguir imaginar a venda de álcool nos estádios na Copa do Catar. "Não vai acontecer. Culturalmente, eles não estão preparados, não sabem utilizar. Não é como a gente, que nasce com um botequim em cada esquina. Eles não foram criados dentro desse conceito, seria preciso pular uma geração para que eles se acostumassem. Não dá tempo até 2022", diz. Mike Lee, estrategista da campanha da Copa do Catar em 2022, afirma que o país deixou sua postura muito clara durante a candidatura, se comprometendo a criar áreas com o consumo liberado de bebidas alcoólicas, mas não mais do que isso. "Durante a Copa, a ideia é que bebidas alcoólicas estejam disponíveis nas áreas para torcedores (fan zones). A questão do álcool nos estádios é uma questão completamente separada", afirma Lee, que preside a Vero Communications e foi também marqueteiro das campanhas para as Olimpíadas de Londres 2012 e Rio 2016. Sobre os eventuais prejuízos que a ausência de bebidas nos estádios pode trazer aos patrocinadores, Lee afirma que a Fifa "estava plenamente ciente e apoiou a posição tomada" pelo Catar. "Aqui é um ambiente onde as pessoas querem que o álcool seja usado de uma maneira muito privada, e isso pode ser bom", afirma Lee. "Esse mito de que futebol e bebida sempre vão juntos... Na verdade, não vão", diz. BBC Brasil - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito da BBC.

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