Nigerianas pagam com corpo ‘dívida’ de viagem à Europa

Omokaro, de 22 anos, uma das poucas que conseguiu fugir do crime organizado, diz que grupo usa até o vodu para ameaçar as famílias

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Por Jamil Chade , Asti e Itália 
Atualização:

Ao deixar a Nigéria, Omokaro Ivie participou de um ritual vodu durante o qual seria estabelecida uma maldição sobre sua família se ela não pagasse a dívida que estava prestes a assumir. O objetivo era bancar seu sonho: o de deixar o interior miserável de seu país em busca de uma vida melhor na Europa.

O chefe local de sua região, matando uma galinha diante de todos e fazendo jorrar o sangue do animal, alertava que um eventual calote significaria um grande sofrimento para a garota de 22 anos e principalmente para sua família, que ficaria para trás. Para o ritual, o líder religioso pediu um pedaço da unha da garota e um pelo de sua parte íntima. Tudo isso regado com ogogoro, uma bebida tradicional banida durante a colonização britânica que hoje custa o equivalente a US$ 0,01 a garrafa. 

Omokato Ivie, nigeriana que escapou dos grupos criminosos que a levaram para a Itália. Hoje, vive escondida Foto: Jamil Chade / Estadão

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Nos dois anos seguintes, o que Omokaro descobriu é que a maldição não era resultado do ato de bruxaria. Mas da violência do crime organizado que, para cobrar a suposta dívida, estava disposto a tudo, até mesmo a subornar o chefe do rito vodu para que a ameaça tivesse uma dimensão espiritual. Hoje, esses grupos controlam a rota de milhares de imigrantes que chegam até a Europa, num comércio milionário de seres humanos. Pelo caminho, esses sonhos são transformados em tortura, mortes e escravidão. 

Omokaro, uma das raras meninas que conseguiram escapar dos grupos criminosos, aceitou contar ao Estado o que viveu desde sua saída da Nigéria. Escondida na Itália e protegida por associações, seu relato é usado pelas autoridades para tentar identificar as redes do tráfico e montar operações.

No caso de Omokaro, seu primeiro destino e promessa de um trabalho apontava para Moscou. Sem nem saber muito bem onde ficava a cidade, a garota embarcou em um avião na Nigéria, em 2015. “Disseram que eu ia trabalhar num salão de beleza. Mas já no aeroporto de Moscou fui detida e deportada.” 

De volta à sua cidade, ela descobriu que os organizadores de sua viagem não estavam dispostos a desistir. “Fui convencida de que teria mais sorte indo para a Itália, usando uma rota que passaria pela Líbia”, disse. Mas logo percebeu que a insistência não tinha nenhuma relação com seu sonho. “Hoje sei que o que eles queriam era que eu pagasse pela viagem frustrada para Moscou e ainda acumulando a dívida da nova viagem.”

O pesadelo começou semanas depois quando Omokaro chegou a Trípoli, em meados do ano passado. “Fui levada para uma casa e passei a ser forçada a me prostituir. Era torturada também quando me recusava a trabalhar e trancada. Eu nem via o dinheiro, que ia direito do cliente às pessoas que controlavam o local. Eu não sabia nem quanto eu valia. Quando perguntava o motivo de minha exploração, me diziam que era para eu pagar a minha dívida. Ali entendi que aquele emprego que me tinham prometido não existia e eu seria uma prostituta também na Europa”, disse. 

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A nigeriana contou que pediu para não continuar a viagem. Mas lhe disseram que, dali, não existia mais forma de retornar. Afinal, sua suposta dívida já chegava a € 50 mil. 

Na noite de 17 de novembro de 2016, com os olhos vendados, ela seria levada com outras meninas a um barco e informada de que, assim que conseguisse seus documentos no centro de acolhimento em Lampedusa, na Itália, deveria telefonar para a pessoa de contato na Europa.

Seria essa pessoa de contato que a levaria a outros locais de prostituição. “Me recusei a fazer isso e, quando cheguei na Itália, contei aos policiais sobre minha situação”, disse. Mas foi ali que a segunda parte do pesadelo começou. “Minha família passou a ser ameaçada e minha mãe terminou no hospital após ser agredida”, contou. Omokaro decidiu resistir e não ceder. “Não sou prostituta. Sou vítima.” 

Para seu desespero, em fevereiro deste ano, sua mãe morreu. “Minha família foi informada de que aquela morte era parte da maldição. Mas eu não acredito. Foi a violência dos criminosos que a deixou tensa e, com problema de pressão, acabou não resistindo”, disse, com voz embargada. Mas ela admite que sua vontade de sair da Nigéria custou “muito caro” para a família. 

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Usando braceletes com frases como “Glória a Jesus”, o porte imponente da nigeriana contrasta com sua voz tímida. “Hoje só quero aprender italiano e conseguir um trabalho. Não recomendo a ninguém na Nigéria tomar o caminho da Europa.”

Se ela optou por se arriscar e fugir, muitas não escapam das redes de traficantes. Para cada programa, cobram apenas ¤ 50, o que transforma a dívida de €50 mil em um calvário. 

Em Asti, num dos bares usados como ponto das prostitutas nigerianas, poucas são as que querem falar de como chegaram até ali. Muito menos se aquilo era uma escolha. “Agora já estamos aqui”, lamentou uma delas.

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Em Genebra, a reportagem do Estado encontrou duas prostitutas nigerianas que, depois de um ano na Itália, foram transferidas para a Suíça. Ambas contaram que sempre desconfiaram que as promessas de emprego não eram reais. 

“No fundo, eu sabia. Mas você sabe onde é que vivíamos? Sabe como é viver todos os dias sob a ameaça de um dia ver o Boko Haram chegar?”, questionou uma delas, que apenas disse se chamar Star. Ela se referiu ao grupo radical que busca a imposição da sharia (a lei islâmica) no norte da Nigéria e cometeu vários atentados no país. 

A menina, que afirma ter 21 anos, evitou responder sobre o que permitiu sua transferência para a Suíça. “Acho que fui promovida”, brincou. “Agora, é reunir dinheiro suficiente e sair dessa vida.” 

Para Entender. A Europa sempre recebeu imigrantes. No entanto, a partir de 2011, o fluxo se intensificou, causando uma grande crise no continente. As razões, de acordo com a ONU, são conflitos em andamento na África, no Oriente Médio e na Ásia, especialmente a guerra civil na Síria e a atuação do Estado Islâmico. Até o ano passado, a rota preferencial de entrada era pela Grécia, mas um acordo entre União Europeia e Turquia asfixiou o fluxo migratório pelo Mar Egeu.

Com isso, a alternativa mais viável foi a Líbia, que vive em estado de anarquia desde a queda de Muamar Kadafi e onde os contrabandistas chegam a faturar até € 1.000 por imigrante embarcado. Segundo estudo da Europol, quase 40 mil pessoas são suspeitas de envolvimento no tráfico, que movimenta até ¤ 6 bilhões por ano.

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